Em 22 anos de jornalismo, cobri cinco guerras como enviado do Grupo RBS: Líbano (2006), Líbia (2011), Iraque (2016), Ucrânia (2022) e Israel x Hamas (2023). Em geral, cheguei nos primeiros dias, com exceção de Bagdá. No caso iraquiano, não era mais a invasão deflagrada pelos Estados Unidos para depor Saddam Hussein, mas sim a guerra civil resultante do destronamento do tirano e do nascimento do Estado Islâmico (EI). Bagdá, naquele ano, era a metrópole mais perigosa do mundo. Excetuando-se essa experiência, em todas as outras observei a transformação de cidades grandes serem convertidas em ruínas, no estado de natureza onde a selvageria corre solta. "O homem lobo do próprio homem", como diria Thomas Hobbes.
Revivi esse estupor ao assistir Vinte Dias em Mariupol, documentário vencedor do Oscar. A indicação foi do colega Ticiano Osório, colunista de GZH.
— Tu tens de ver — ele disse.
Eu evitava, confesso. Imaginava que seria levado a memórias que, por vezes, tento guardar em um canto escondido do inconsciente quando retorno de uma cobertura em terras hostis. Não quero lembrar.
Fiquei no Leste Europeu mais ou menos o mesmo tempo que o fotógrafo e documentarista Mstyslav Chernov esteve em Mariupol, nas primeiras semanas da mesma guerra. Me dividi entre Polônia, Eslováquia, Hungria e Ucrânia. Ao ver o documentário, obviamente, lembrei das sirenes antiaéreas, com sua agonia em forma de som, que atordoam e nunca são esquecidas. Em geral, elas são o primeiro contato que nós, jornalistas estrangeiros, temos com o conflito.
A diferença é que Chernov e seus colegas são ucranianos. Viram o horror em sua própria terra. Ficaram quando todos tentavam sair. E alguns, como nós, brasileiros, tentávamos entrar.
O que mais me chamou a atenção em Vinte Dias em Mariupol foi como uma cidade de 400 mil habitantes transforma-se, aos poucos, em um inferno na Terra. Nas primeiras cenas, havia a iminência da invasão russa. Os jornalistas revelam uma cidade praticamente normal: com ônibus e carros nas ruas, pedestres e suas vidas comezinhas, crianças indo à escola. No segundo dia, os rumores aumentam. A população some das ruas. Começa o saque. O desespero de quem imagina (e isso vai se confirmar) que faltará comida, água, remédios. Em uma das cenas mais impressionantes, uma comerciante com seu estabelecimento saqueado por moradores grita sem compreender por que aqueles que até dias atrás eram seus vizinhos estão fazendo aquilo. É o "cada um por si" da guerra.
Depois, aparecem sons de bombardeios nos arredores. Mais informes de que "os russos" estão se aproximando. Os ataques se intensificam. Se você acompanhou os primeiros dias do conflito, deve lembrar da maternidade de Mariupol. Lá, gestantes e bebês morreram em um bombardeio que entrou para a história da infâmia da humanidade. De lá, uma mulher com a barriga rasgada foi retirada em uma maca. O feto morreu.
Nos últimos dos "20 dias", os tanques russos aparecem nas ruas. Um deles aponta o canhão para onde os jornalistas estão, nos andares mais altos de um prédio.
O filme é forte. Assisti à noite. Não dormi naquela madrugada porque revivi cada minuto dos conflitos que testemunhei. Mariupol foi um pouco de cada uma das guerras do século 21. E do século passado. Preferia não ter visto? Você deve estar se perguntando isso. Não. Precisamos encarar nossos monstros. Vinte dias em Mariupol precisa ser assistido para que não esqueçamos do que a humanidade, nós, somos capazes de repetir. Antes, durante e depois.