Um dos cardeais mais próximos do papa Francisco, o português José Tolentino de Mendonça está em Porto Alegre, onde recebe, nesta terça-feira (5), o título de Doutor Honoris Causa concedido pela Pontifícia Universidade Católica do Ro Grande do Sul (PUCRS). Poeta, teólogo, filósofo e prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação na Cúria Romana, Tolentino é autor de diferentes obras reconhecidas mundialmente.
Em 2018, o Francisco o nomeou arquivista do Arquivo Secreto do Vaticano e bibliotecário da Biblioteca Apostólica. Naquele ano, Tolentino orientou o retiro de Quaresma do Papa e seus mais diretos colaboradores. Atualmente é prefeito do novo Dicastério para a Cultura e a Educação e assumiu a missão com a publicação da constituição apostólica Praedicate Evangelium. Até esta quinta-feira (6), o cardeal participa do Congresso Teológico Internacional de Pastoral Urbana, evento promovido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em parceria com o programa de Pós-Graduação em Teologia da universidade.
Ele conversou com a coluna no gabinete da reitoria da PUCRS na tarde desta terça-feira (5). A seguir, os principais trechos.
Como está a saúde do papa Francisco?
O Papa, sobre isso, fala muito abertamente, no sentido que as questões de mobilidade são as que se observa. Ele se desloca como uma pessoa da sua idade, com alguns limites de mobilidade. De resto, tem, de vez em quando, como todo mundo, algum problema de gripe, com a mudança de estação. Mas, de resto, ele está bem. O melhor testemunho disso é a agenda colossal que ele vive gerindo. Ninguém que não tenha uma saúde boa, estável, consegue gerir aquela agenda quase sobre-humana que ele vive cumprindo.
Mesmo em vida é possível definir o legado do papa Francisco?
Penso que estamos em uma fase em que desejamos que ele possa continuar conosco por muito tempo. E, mais do que um legado, hoje vivemos com ele. Celebremos essa grande alegria de ter uma figura profética, como o papa Francisco, que nos ajuda a todos a sermos mais: mais cristãos, a vivermos mais o Evangelho, a termos a alegria de acreditar e de testemunhar e a deixar-se habitar por esse sonho missionário de chegar a todos, de abraçar a todos. Em Portugal, na Jornada Mundial da Juventude, ele proferiu uma das frases daquelas que ficam, que não não são mais esquecidas: "Todos, todos, todos". Esse desejo de chegar a todos, de ter uma Igreja que possa verdadeiramente testemunhar o rosto amoroso, misericordioso de Cristo, é alguma coisa que nós, diariamente, recebemos dele. Por isso, mais do que testamento, é bom ler o que ele nos diz no aqui e no agora, porque ele está conosco e vai continuar.
Um gesto muito importante de Francisco foi a autorização para a bênção de casais homoafetivos. Isso fez com que ele sofresse críticas internas. Que mensagem o Papa deseja passar ao agir assim?
O texto é muito importante e a leitura vale a pena, porque é uma reflexão sobre a bênção. Aqui na América Latina e no Brasil, tem-se a percepção também cultural de quanto a bênção é importante para a vida. A bênção não é uma legitimação, mas tem capacidade de lembrar o fundamental. É dizer: "Tu és filho, tu és amado, tu tens em ti a certeza do amor incondicional de Deus". A Igreja tem de ser testemunha de um amor assim para todos, para todos, sem exceção. Nesse sentido, penso que o Dicastério para a Doutrina da Fé publicou esse documento para aqueles casais que estão em situação irregular e para as pessoas homossexuais, no sentido de testemunhar a todos o amor de Deus.
A tecnologia vira tecnocracia e uma ameaça quando se torna um fim em si mesma e não um meio para promover a vida e para gerar igualdade
Francisco vem buscando conformar uma igreja menos europeia. É possível perceber isso a partir da indicação dos cardeais. A Igreja Católica caminha para ser menos centralizada na Europa e mais periférica? E como isso refletiria em um conclave?
Uma palavra muito bela é a palavra católico. Católico quer dizer universal. Não é só de uma tradição ou de um continente. É o mundo todo, na riqueza intercultural de todas as proveniências. Claramente, Francisco disse isso, com seu humor, em sua primeira fala, quando afirmou que os senhores cardeais haviam ido buscar um Papa no fim do mundo. Ele transporta uma visão de mundo que complementa àquela dos outros continentes. Não é mais só uma visão europeia ou outra a dominar. Mas é um esforço para traduzir a amplitude da Igreja. E, claro, isso está representado nas nomeações dos cardeais que o Papa tem feito, com essa preocupação de não concentrá-los todos em um país ou em um continente, mas que todos estejam representados. Penso que é uma visão muito bela, muito necessária, que ele quer passar: de que, para expressar a riqueza do catolicismo, temos de ser polifónicos, ouvir os vários lados do mundo. Como ele diz, já não é a esfera o símbolo que traduz a realidade, mas o poliedro com as suas múltiplas faces.
O senhor é um poeta e lidera a Igreja na área da cultura, o que pensa sobre a inteligência artificial, devemos temê-la?
Temos de vê-la como uma ferramenta. Nesse sentido é um benefício grande, porque vai permitir passos em frente. Por exemplo, que possamos fazer uma ligação telefônica e falar, ao mesmo tempo, com uma pessoa que se expressa em uma língua diferente da nossa e nos entendermos e termos uma tradução imediata. Não há ninguém que diga que isso é bom. Então, em alguns aspectos, a inteligência artificial, é um benefício. Por outro lado, nós sabemos que no centro tem de estar o ser humano. A tecnologia vira tecnocracia e uma ameaça quando se torna um fim em si mesma e não um meio para promover a vida e para gerar igualdade, justiça e bem-estar social para todos.
Como avalia esse mundo de ódios, polarização política e guerras?
Um dos problemas do mundo futuro é se ele vira uma distopia. Em vez de uma utopia social, de um mundo mais fraterno, vira um mundo mais hostil, onde as polarizações nos distanciam uns dos outros. Ora, em vez de um mundo onde triunfa a hostilidade, a recusa do outro, precisamos de modelos de hospitalidade, de curiosidade pelos outros, de disponibilidade para escutar sempre, e a cultura ensina-nos isso. Sempre saímos ganhando quando acolhemos o outro, o diverso. Todas as grandes invenções humanas nasceram do encontro das culturas dos povos, dos seres humanos. E é essa diversidade que verdadeiramente precisamos.