Diante da láurea do Nobel da Paz concedida à ativista iraniana Narges Mohammadi, cabe uma pergunta: o que é, afinal, paz? Seria "apenas" a ausência de guerra?
A questão da guerra (ou da paz) dominou o campo das Relações Internacionais desde os seus primórdios. Desde a Segunda Guerra Mundial, no entanto, paz e segurança são conceitos que andam juntos. E devem ser entendidos de forma mais ampla: podemos falar de segurança alimentar, segurança ambiental, segurança energética. Tudo isso é garantia de paz. Não sozinhas, é claro.
Embora o Nobel esteja longe de ser igualitário - em suas láureas, há excesso de homens (foram apenas 19 mulheres entre os 92 vencedores em sua história), o comitê tem se permitido uma visão amplificada no entendimento de personalidade que contribuem para a paz. Não são só aqueles ou aquelas que dedicaram-se a evitar a guerra. São também pessoas que, de alguma forma, contribuíram para a liberdade e a defesa dos direitos humanos.
O direito de mulheres de ter uma vida plena e digna é paz. É segurança. Tudo o que o regime dos fanáticos aiatolás não garante no Irã.
O prêmio a Narges é um tributo contra o radicalismo de todos os matizes - religioso, político e ideológico. Por isso, deve ser saudado nesses tempos de trevas em quase todos os quadrantes do globo. Calhou de Narges ser iraniana e de estar detida na famosa prisão de Evin, em Teerã, a mais conhecida masmorra dos aiatolás. Mas, se tivesse nascido na Arábia Saudita, para ficarmos no rival local (sunita) dos xiitas, não seria muito diferente. O país do príncipe Mohammed bin Salman acossa mulheres, ativistas de direitos humanos e jornalistas com a mesma crueldade dos vizinhos de Golfo, apesar de seu verniz liberalizante que seduz ocidentais. Mas essa é outra história.
Narges sofre perseguição do governo iraniano há 30 de seus 51 anos. Desde que entrou na universidade e começou a escrever artigos que incomodavam os fanáticos. Denunciava, desde jovem, as mulheres perseguidas, presas, torturadas e mortas. Passou a ser uma delas. Foi detida 13 vezes, tem cinco condenações, totalizando 31 anos de cadeia e uma pena de 154 chicotadas. A acusação: "propaganda contra o Estado".
A última vez que Narges abraçou seus filhos, os gêmeos Ali e Kiana, foi a oito anos. A última vez que conversou com os dois, por telefone, foi há um ano. Quando outra mulher, Mahsa Amini, foi presa porque "não estava usando o hijab (o véu islâmico) de forma correta" (ela morreu sob custódia), Narges levantou sua voz de dentro da cela de Evin. Com as outras detentas, provocou uma rebelião no pátio da penitenciária. Palavras foram escritas nos muros internos em protesto. Enquanto os guardas corriam para apagar as letras, a penitenciária pegava fogo. Temo imaginar como, uma vez debelada revolta, como foram os dias seguintes dessas mulheres que ousaram se levantar contra o regime.
Mesmo com todo o controle, Narges conseguiu publicar um artigo, em setembro, no The New York Times. Ah, aqueles que ainda pensam que textos são escritos com as mãos... Não o são. Nem por jornalistas, como Antônio Maria, nem por quem acredita na liberdade, como Narges.
No artigo, que de alguma forma chegou às rotativas (e meios digitais) do jornal, ela afirmou: "Quanto mais nos aprisionam, mais fortes nos tornamos". "Mulher, vida e liberdade", o lema de Narges, que inspira também Shrin Ebadi, outra iraniana que recebeu o Nobel, é também um grito por segurança e paz.