Estados Unidos e Irã voltam a se enfrentar em uma Copa do Catar nesta terça-feira (29) pela primeira vez desde 1998, quando uma partida pelo Mundial da França também mobilizou comentaristas do noticiário internacional pelo que ocorre fora do gramado. Na ocasião, o iranianos venceram os americanos por 2 a 1.
Os aspectos geopolíticos que envolvem a rivalidade entre os dois países remontam à Guerra Fria.
As origens da disputa
Herdeiros da antiga Pérsia, o Irã, rico em petróleo como todos os países do Golfo Pérsico, tinha nos anos 1950, um primeiro-ministro chamado Mohammed Mossadegh. Ele fora eleito democraticamente com uma plataforma de governo, do tempo em que era deputado, pela nacionalização do petróleo. No poder, implementou essa lei, o que desagradou, obviamente, as empresas petrolíferas, como a Anglo-Iranian Oil Company, e a potência dominante na região à época, o Reino Unido - além claro, da nação em ascensão no sistema internacional pós-Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos.
Como era habitual à época, uma operação orquestrada pelo MI6 (serviço secreto britânico) e a CIA (a agência de inteligência americana) chamada Ajax depôs Mossadegh, espécie de símbolo da luta antiimperialista, em 1953. Ele não era um comunista, mas suas ações nacionalistas fizeram os EUA o verem como um risco de aproximação à União Soviética.
À época, o Irã era uma monarquia parlamentarista - ou seja, além de um primeiro-ministro, tinha um rei (chamado de xá). No trono desde 1941, Mohamed Reza Pahlevi, próximo dos britânicos e dos americanos, acabou sendo, de certa forma, instrumentalizado pelos líderes ocidentais. Até 1969, com as rédeas do poder na mão após a deposição de Mossadegh, ele promoveu um ensaio de modernização (a revolução branca), apoiada pelo capitalismo, que, na prática, escondida um governo autoritário.
A Revolução Islâmica
Embora não seja árabe (mas persa), o Irã tem como religião predominante o islamismo, que exerce forte influência política por meio de seus líderes - os aiatolás. Mas até aí o país tinha uma vida social laica. Um dos maiores críticos do regime do xá, o aiatolá Ruhollad Khomeini, que vivia no exílio, voltou ao Irã em 1979 para comandar, ao lado de esquerdistas, liberais e muçulmanos tradicionalistas insatisfeitos com a corrupção e o autoritarismo do Pahlevi, a Revolução Islâmica. A agenda dos opositores era reformas sociais e econômicas e a recuperação de valores religiosos e tradicionais do Islã. Protestos, greves levaram à deposição do xá, em 1º de abril daquele ano. Pahlevi fugiu do país, o aiatolá Khomeini assumiu o cargo de chefe religioso e governante do país. O Irã se tornava uma República Islâmica, o que alterava profundamente a estrutura social do país, estabelecnedo novas doutrinas segundo as quais a religião tinha preponderância. O país virou uma ditadura teocrática, com castigos corporais, pena de morte para opositores, prostitutas e gays, por exemplo. Também foram proibidos hábitos ocidentais, como uso de maquiagem, minissaia e o véu islâmico passou a ser obrigatório. O Irã passou a ser visto como um país inimigo dos Estados Unidos, antro de extremistas religiosos e questionador da hegemonia americana no mundo e negando a existência de Israel na região. Ainda no contexto da Guerra Fria, a URSS foi o primeiro país a reconhecer a república islâmica.
A tomada de reféns
Um componente a mais nesse turbilhão de rivalidades e ódio foi a tomada, por 444 dias, da embaixada dos EUA em Teerã. Cinquenta e dois cidadãos e diplomatas americanos foram feitos reféns no ano da Revolução. Eles só foram libertados após a assinatura dos Acordos de Argel, no qual os americanos se comprometiam a não intervir na política iraniana. Em 1980, os dois países romperam relações diplomáticas e passou a ser alvo de sanções econômicas - daí a aliança de ocasião que surgiu entre Saddam Hussein e os americanos na guerra Irã-Iraque, entre 1980 e 1988. Nos anos 2000, como se sabe, o ditador iraquiano virou inimigo dos americanos, mas, por quase uma década, foi o braço estendido da CIA contra os iranianos. Mas essa é outra história...
O terrorismo
Isolada, pária internacional, a ditadura dos aiatolás começou a ser vista como um país patrocinador do terrorismo - até hoje atentados como os da Amia e da embaixada de Israel em Buenos Aires, nos anos 1990, são vistos como obra do Irã. O país também começou a construir um arco de alianças com organizações xiitas na região - como o Hezbollah, no Líbano. E começou a desenvolver um programa nuclear - que o governo diz que para fins civis, mas os Estados Unidos e a União Europeia consideram capaz de produzir armas atômicas. Após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, obra da rede Al-Qaeda (que é sunita e rival do xiismo iraniano dentro da divisão do Islã em duas vertentes), o presidente George W. Bush declarou o Irã membro de um suposto "eixo do mal", ao lado de Iraque e Coreia do Norte.
Acordo nuclear
Com Barack Obama no poder, a partir de 2008, o governo americano optou pelo diálogo, algo que não ocorria desde a Revolução Islâmica. O aiatolá Khomeini havia morrido em 1989, e o próprio regime islâmico sofre divisões internas entre alas mais radicais e outras moderadas. Em 2015, Obama fechou um acordo nuclear com o Irã, segundo o qual o país cessaria seu programa atômico em troca das suspensões das sanções. O acordo foi vigorou até Donald Trump rasgá-lo, alegando que o país inimigo não estaria cumprindo as regras e seguia produzindo seu arsenal nuclear. Em 2020, o presidente americano ordenou bombardeio que matou Qassem Soleimani, chefe de uma unidade especial da Guarda Revolucionária do irã, um dos homens mais poderosos do país. O Irã prometeu vingança.
Um grito contra o véu
Internamente, a ditadura segue com sua mão dura sobre a população civil - em especial contra mulheres e gays. Volta e meia, protestos são silenciados com força pelo regime. Mulheres, que desde a Revolução são obrigadas a usar o hijab, o véu, têm sido a voz mais ecoante da defesa de direitos humanos. Em outubro de 2022, a morte de Mahsa Amini, 22 anos, após sua prisão por usar o lenço de forma "inadequada", desencadeou nova revolta. A repressão é brtal: as Nações Unidas reportam 14 mil pessoas presas desde então, e ONGs de defesa dos direitos humanos informam 419 mortas. A Copa, que ocorre no Catar, país que fica de frente para o Irã, dividido apenas pelas águas do Golfo, virou caixa de ressonância desses protestos por liberdade. Há décadas, o regime treme. Mas não cai.