Um dos maiores juristas do Brasil, Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) e ex-presidente da Corte, está seriamente preocupado com o ódio à democracia.
Durante uma hora e meia de entrevista, na qual ele ficou com a Carta Magna em mãos durante todo o tempo, recorrendo frequentemente ao livro para citações de artigos, ele comentou os ataques de 8 de janeiro, refletiu sobre a regulamentação de redes sociais e opinou sobre a possível indicação de Cristiano Zanin, advogado de Lula, para a vaga aberta na Suprema Corte, após o anúncio da aposentadoria de Ricardo Lewandowski, na quinta-feira (30).
Entre trocadilhos, versos, citações de autores como Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Norberto Bobbio, Ayres Britto, que também é professor, escritor e poeta, recebeu a coluna seu escritório no Lago Sul, em Brasília, um dia após retorno de uma curta viagem a Porto Alegre, onde participou do lançamento do Prêmio Innovare, organizado pelo Instituto Innovare, do qual é presidente do Conselho Superior.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
O senhor já conversou com o ministro Ricardo Lewandowski depois que ele anunciou a aposentadoria?
Ainda não. Mas já conversamos inúmeras vezes: é muito bom teórico do Direito e muito bom profissional. É qualificado, professor titular da USP de longa data. Ele é um acadêmico, portanto um teórico, e, ao mesmo tempo, um operador jurídico, portanto um profissional do Direito. E quando o professional do Direito é um acadêmico e um acadêmico é um profissional do Direito, reúne teoria e prática, tem-se o melhor dos mundos.
Diante dessa vaga que se abre, há toda uma discussão sobre a necessidade de ela ser preenchida por uma mulher ou por um homem ou mulher negra. Falta representatividade na Corte?
Está faltando. Devemos ter mais mulheres e negros. Porque essa diversidade étnica do Brasil é um ativo cultural, um ativo civilizatório. Quanto mais conseguirmos reunir pessoas representativas dessas etnias, mais aumenta nosso patrimônio cultural.
A Suprema Corte não representa o Brasil?
Nessa medida, para representar com mais autenticidade, precisa homenagear mais a diversidade étnica. A Constituição fala de cor no artigo 3º inciso 4, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos. Como se promove o bem de todos? Sem preconceitos. A promoção do bem de todos começa pela eliminação dos preconceitos de origem, seja racial, geográfica, tonalidade da pele, tez. Djavan diz em uma música: "Branca é a tez da manhã". Se o Supremo homenageia esse artigo 3º inciso IV da Constituição, fazendo da diversidade étnica um ativo cultural, será muito melhor para o país.
Há, normalmente, uma conversa entre os ministros sobre nomes?
De ordinário, não. O acaso também dá um pouquinho as caras. Eu me lembro de Nelson Rodrigues personalizando o imponderável de Shakeaspeare, em Hamlet, chamando-o de "Sobrenatural de Almeida". Ele também dá as cartas... Nem tudo se passa com absoluta previsibilidade. De repente, o imponderável entra em campo e dá as cartas. No meu caso, eu estava em Aracaju, e em uma noite de novembro de 2002, Lula já eleito, recebo um telefonema do professor Celso Antônio Bandeira de Mello, um ícone do Direito: "Carlos, você está sabendo de três próximas vagas no Supremo?" Disse: "Sim, estou sabendo". Ele: "Pois é, estive aqui com amigos e chegamos à conclusão de que você seria um bom nome para o Supremo". "Mas Celso, por que não você?" Ele disse: "É porque eu já fiz 60 e você ainda não fez. Você passou pela PUC, mestrado, doutorado, foi professor, nós aqui, um grupo de professores, resolvemos indicar o seu nome. Estou lhe dizendo para saber se você vai refugar ou não". Eu respondi: "Celso, eu nunca pensei em ser ministro do Supremo". E nunca, jamais cogitei. Aí, eles foram à OAB. A repercussão foi boa. Ele liga pra mim em fevereiro de 2003: "Olha, estivemos com o presidente Lula e fizemos a postulação para o seu nome, e ele foi altamente receptivo. Já conhecia você.
O senhor já conhecia Lula?
Sim, porque fui militante petista. Fui candidato a deputado federal pelo PT. Lula disse: "Sim, conheço o Carlos de longa data". Muito estudioso, atualizado, poeta. Referendou. Eu fui conselheiro da OAB duas vezes, membro da Comissão de Estudos Constitucionais. Esses precedentes contam. É uma vida, não é em um piscar de olhos que as pessoas vão se lembrar do seu nome. É preciso uma biografia, uma reputação não só do ponto de vista ético como também acadêmico. Nome de ministro do STF não cai de paraquedas. Há uma concomitância de fatores convergentes para sua indicação.
O fato é que no Brasil há democraticidas organizados e financiados
Que perfil o senhor imagina hoje para a vaga?
Vamos começar o perfil pela Constituição: notabilidade do saber jurídico, reputação ilibada e brasileiro nato, mais de 35 anos, menos de 70. E neste momento o que mais importa: observar a diversidade étnica, sempre que possível, e ponto de arremate: tratar-se de um democrata de raiz, caule e fruto. Um democrata convicto, testado em sua convicção. Porque a democracia é objetivamente o princípio dos princípios da Constituição. Liberdade de imprensa só existe se houver democracia. Liberdade de expressão, só existe se houver democracia. Inviolabilidade parlamentar, só se houver democracia. O fato é que no Brasil há democraticidas organizados e financiados, de que deu conta no clímax o episódio o 8 de janeiro deste ano.
O que o senhor acha de Cristiano Zanin, advogado de Lula na Lava-Jato, ser o possível indicado pelo presidente?
Ele é um profissional muito bem conceituado no plano teórico, dotado de conhecimentos técnicos de relevo. Tem competência, vocação, dedicação no plano prático. Ele é empenhado no que faz. É devotado. Ele é um bom teórico e um bom operador do direito. Não sei muito dele, porque ele é um penalista, um advogado criminalista. Não sou penalista, não sou advogado e nunca fui. Agora, entendo também que para ser ministro do Supremo é preciso respeitar a vocação técnica do indicado, porque o Direito é feito de várias especialidades: processualista, ambientalista, penalista. Mas é preciso ser também constitucionalista. Não basta ter a vocação e a prática especializada em um dos ramos do Direito. É preciso ter uma bagagem de Direito Constitucional muito boa, porque o Supremo é o guardião mais alto da Constituição. Para guardá-la é preciso entendê-la.
O senhor não vê problema o indicado ser advogado de Lula?
Não tem, a rigor, problema. Agora, é preciso que o presidente não faça a indicação somente pelo fato de confiar no seu advogado, de ser grato ao advogado que o salvou dessa ou daquela reprimenda legal. É preciso enxergar para além do vínculo pessoal, é preciso alargar a vista. Porque não se paga com esse tipo de indicação. Gratidão é de ordem pessoal, não pode haver gratidão no plano funcional. Isso é embaralhar as coisas. É por isso que no artigo 37º da Constituição se fala de impessoalidade. É preciso ser impessoal nessas horas.
No início da nossa conversa o senhor disse que, em geral, concorda com as decisões atuais do Supremo, mas lhe preocupa a fundamentação. Muito se fala da necessidade de decisões mais colegiadas e menos monocráticas.
Cada vez mais. Em uma sociedade polarizada politicamente e com polarizações concebidas, planejadas, industriadas, é preciso que as decisões tribunalícias a partir do Supremo sejam entendidas pelo grande público, assimiladas com mais facilidade e revestidas de mais autoridade. E o colegiado tem mais autoridade técnica, intelectual, do que qualquer dos membros isolados. O princípio da colegialidade mais e mais se faz exigente em uma sociedade tão planejada quanto financiadamente polarizada.
Por outro lado, se não fossem decisões monocráticas, como as do ministro Alexandre de Moraes, a democracia correria risco?
Muitas vezes, na vida e no Judiciário, a hora de enxugar a lágrima é quando ela está caindo. A hora de resolver o problema é quando ele mais se agudiza, passando a exigir pronta resposta a fim de que a sociedade recobre um instante que seja de pacificação. Nesse caso, as decisões monocráticas se impõem. No caso de Moraes eu subscreveria quase a totalidade das decisões dele.
Há um excesso de protagonismo do Judiciário? É maior do que enquanto o senhor estava na ativa?
Está maior, porque as contendas se agudizaram por efeito da comunicação online. Os ministros de hoje trabalham com mais dificuldades do que os de antes. Porém, há uma confusão que por vezes é intencional fazendo lembrar Bertold Brecht, quando falou: "Há quem prepare cuidadosamente o seu próximo erro". O erro de confundir ativismo com proatividade interpretativo. O ativismo é proibido pela Constituição. O juiz não pode ser ativista porque isso significa usurpação de competência dos outros dois Poderes, notadamente do Legislativo. Por outro lado, há o dever constitucional da proatividade, de não ficar aquém. Uma coisa é ir além do conteúdo normativo, é proibido. Outra coisa é ficar aquém.
A liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade
Qual a sua opinião sobre ampliar o número de ministros?
Pode ser que mais adiante a gente fale sobre esse tema, com mais calma, foco e profundidade. Hoje seria contaminado pela política. Quando digo que a democracia é o princípio dos princípios, não é porque eu queira. "Isso é coisa dos esquerdopatas, dos lulistas, dos ministros do Supremo querendo se defender porque estão invadindo a competência dos outros é uma desculpa fácil falar de democracia." Isso é uma constatação objetiva: se você for no preâmbulo da Constituição, você vai encontrar "nós representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir o Estado democrático". Se você for para o artigo 1º, "A República Federativa do Brasil, formada pela União indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, constitui-se de um Estado Democrático de Direito". Aí, você vai para o artigo 5º, 44: "Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e o regime democrático". Forças Armadas e órgãos de segurança golpearem o Estado é a suprema traição porque eles foram armados para defender as instituições do Estado democrático. Não é uma beleza de Constituição se bem interpretada?
Um dos princípios da democracia é liberdade de expressão. O que o senhor pensa sobre a regulamentação de redes sociais?
A liberdade de expressão é para o indivíduo. Quando a expressão é da coletividade muda de nome, chama-se liberdade de imprensa. A liberdade da expressão coletiva se chama liberdade de informação jornalística. No artigo 5º, inciso 9: É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicações, independentemente de censura e licença. Então absoluta liberdade. Eu fiz trocadilho: "A liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade". É plena a liberdade de imprensa. O pleno é o cheio, é o compacto, você não pode relativizar o pleno. Vamos às últimas consequências, se você no uso da liberdade de expressão individualmente e no uso de sua liberdade de imprensa coletivamente, como profissional, corta os pulsos da democracia, ela vai morrer por assassinato, e você vai morrer por suicídio. O conteúdo não pode explodir o continente, a Constituição.
Mas e as redes sociais?
As redes são uma nova modalidade de imprensa? Não. À luz da Constituição, não. Segundo, as redes sociais podem tudo, igual à liberdade de expressão. Menos atentar contra a democracia.
Então, concorda com regulamentação?
Sim. Todas essas plataformas, provedores, todas essas empresas trabalham com algoritmos, porque se ganha muito dinheiro conhecendo o perfil dos usuários. Você tem de agora usar os algoritmos para detectar golpes à democracia. Um novo tipo de compliance. Você não tem compliance para a parte ética das empresas? E para o princípio dos princípios, que é a democracia, não tem de ter?
Eu perguntei ao ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU), se o Brasil esteve perto de uma ruptura institucional em 8 de janeiro. Ele disse que 8 mil pessoas não colocam em risco a democracia. Repito a pergunta ao senhor: estivemos perto de um golpe?
Houve uma orquestração, não vejo aquele ato isolado, vejo como parte de algo serial. O próprio plantão de mais de um mês em frente aos quartéis já fez parte desse golpe. O dia 8 não foi isolado. Ali foi uma tentativa de golpe à democracia. O Código Penal recebeu dois novos dispositivos: o L e o M do antigo artigo 359. "Tentar com emprego de violência ou grave ameaça abolir o Estado democrático de Direito, impedindo, restringindo o exercício dos poderes constitucionais". "Golpe de Estado, tentar depor por meio de violência ou grave ameaça o governo legitimamente constituído". E esses dois artigos foram plenamente violados. Ali foi pior do que nos EUA, porque foi às sedes dos Três Poderes. Ali foi uma infâmia. No meu entendimento, o que está acontecendo no Brasil é muito mais grave. Todo mundo fala de ódio disseminado, financiado. Esse ódio não é a beltrano, ciclano, nem mesmo a Lula, nem ao Supremo, nem a Alexandre de Moraes. Esse ódio é à democracia. O buraco é mais embaixo. Nós temos um segmento social que não é majoritário, mas é barulhento e organizado e concilia autoritarismo e elitismo, a mistura tóxica pior para a democracia, pelos conteúdos dela: liberdade expressão, de imprensa, meio ambiente ecologicamente equilibrado, divisão da riqueza, proibição de preconceitos, freios e contrapesos, os limites. São nossos defeitos de fabricação colonial mais graves.