Professor da Universidade de Harvard, pesquisador do Instituto Hoover de Stanford e autor de vários livros sobre história, economia, conflitos (entre eles, o best-seller Civilização: Ocidente x Oriente), o escocês radicado nos Estados Unidos Niall Ferguson é um dos historiadores mais influentes da atualidade. Crítico do governo chinês e defensor do liberalismo, o estudioso que previu a crise financeira internacional de 2008 aconselha o Brasil a adotar uma posição neutra, não alinhada, diante do grande embate do século 21 nas relações internacionais, a disputa por hegemonia entre China e Estados Unidos, fenômeno que ele chama de segunda Guerra Fria.
A partir de uma perspectiva neoconservadora, Ferguson é crítico contumaz de administrações democratas nos Estados Unidos, como as de Barack Obama e Joe Biden. Esta entrevista, concedida por Zoom, ocorreu na última segunda-feira, um dia depois da queda de Cabul, no Afeganistão, episódio que o pesquisador considera uma "rendição americana". Durante a conversa, ele também explica por que apoiou Jair Bolsonaro e coloca, em perspectiva histórica, a pandemia de covid-19. Conforme Ferguson, o tamanho da tragédia será medido não pelo número de mortos, mas por seus impactos econômicos, políticos e sociais, comparáveis, em sua visão, aos efeitos das grandes guerras mundiais.
Ferguson lançou neste ano Doom: The Politics of Catastrophe (Apocalipse: As Políticas da Catástrofe, em tradução livre), que deve chegar ao Brasil em outubro. Na obra, ele faz um apanhado histórico dos grandes desastres globais e de como as sociedades reagem ao imponderável, desde tragédias provocadas pela natureza, como terremotos e erupções, até catástrofes produzidas pelas mãos dos homens, como guerras e explosões atômicas, passando pelas pestes, como o coronavírus. O autor é um dos conferencistas deste ano do ciclo Fronteiras do Pensamento, no dia 13 de outubro (veja, ao final, como se inscrever). A seguir, os principais trechos da entrevista concedida a GZH.
O seu novo livro faz uma análise sobre os diferentes desastres que o mundo já testemunhou, de pandemias a guerras. Que tipo de mundo irá emergir da atual pandemia?
A resposta tentadora seria de um mundo mais fragmentado, no qual viajar é mais difícil e os negócios são reduzidos. Mas acho que isso pode estar errado porque em muitas maneiras está havendo extensa colaboração científica internacional nos últimos 18 meses. Cientistas dos diferentes campos, da biologia, da epidemiologia, têm trabalhado duro para entender esse novo vírus e as causas da doença. Temos já chance razoável de conter, não de erradicar, mas de conter o vírus em um horizonte de vários anos. Então, acho que não devemos ser muito pessimistas. O HIV matou 35 milhões de pessoas em menos de três décadas. Não acho que a covid-19 fará o mesmo porque, apesar de muitos tropeços, particularmente de governos, a colaboração científica teve enorme sucesso.
O Ocidente percebeu que é muito dependente da China, uma vez que máscaras, respiradores e outros equipamentos passam por suas cadeias de produção?
A pandemia revisou duas coisas. Primeiro, você realmente não pode ter completa confiança no Estado da China. Segundo, não ter uma rede de fornecimento sem o envolvimento da China é de fato uma grande adversidade. A pandemia reforçou tendências que já existiam na linha do que chamei de Chimérica em 2007 (neologismo criado por Ferguson para descrever a relação simbiótica entre as economias estadunidense e chinesa). Em parte por causa da crise financeira, em parte porque as vantagens que a China oferecia estavam sendo reduzidas. Não era tão barato como antes costumava ser fabricar manufaturas na China. Acho que Chimérica estava em declínio desde a crise financeira, e a pandemia levou ao final. Claro, não está completamente condenada. Mas o processo de dissociação é contínuo, como a gente observa em muitas empresas chinesas de tecnologia que não são mais capazes de operar nos EUA, com essa pressão de seu próprio governo e a partir do governo dos EUA.
O senhor costuma criticar a mídia, afirmando que os jornalistas reportam crises como sendo “as piores” já vistas, o “Apocalipse”. Qual o tamanho dessa pandemia em termos históricos?
Esta é uma pandemia que matou 0,06% da população mundial. Mesmo se a gente aceitar as mais altas estimativas de mortalidade, não será superior a 0,17% (da população mundial). A Gripe Espanhola, em 1918-1919, foi 10 vezes pior. Matou cerca de 2% da população mundial. A Peste Negra matou um terço dos seres humanos que viviam nos anos 1340. Então, essa não é uma das 10 maiores pandemias da história. Deve ser uma das 20. O real significado histórico de toda a pandemia não é quantas pessoas foram mortas, mas na realidade a ruptura econômica e política que causa. Porque fomos capazes de fazer coisas no ano passado e ainda este ano que realmente eram impossíveis antes: lockdowns, confinando pessoas em suas casa, dizendo para trabalharem em casa. Todas essas coisas seriam impossíveis até o advento da internet. Então, estamos experimentando no último ano choques na sociedade e na atividade econômica. Há inflação na maioria das economias, e também a destruição das economias mais frágeis, como no caso do Líbano. Os custos econômicos e as consequências nos serviços públicos de saúde estão se transformando em consequências políticas. Economicamente se parece mais como uma guerra mundial, enquanto como pandemia, em termos de mortalidade, é apenas uma entre as 20 maiores. Parece mais um desastre econômico do que um desastre do ponto de vista de saúde pública.
O real significado histórico de toda a pandemia não é quantas pessoas foram mortas, mas na realidade a ruptura econômica e política que causa
Voltando à China. O senhor costuma dizer que estamos em meio a uma segunda Guerra Fria, desta vez entre EUA e China. Essa disputa pode nos levar a uma Terceira Guerra Mundial?
É possível porque, mesmo na primeira Guerra Fria, o conflito entre os EUA e os soviéticos produziu a Guerra da Coreia, que foi uma grande guerra, muito maior do que as guerras no Iraque ou no Afeganistão. É possível ver uma guerra quente por causa de Taiwan. Não é o mais desejável cenário porque não posso imaginar a administração Biden indo à guerra por Taiwan. Essa é uma administração que está diante de uma rendição abjeta no Afeganistão. É difícil imaginá-lo enviando porta-aviões para defender Taiwan ou fazer recuar uma invasão chinesa. É mais claro para mim o fato de a China aumentar seu desafio à preponderância dos EUA em regiões especificas. A Guerra Fria teve coisas curiosas. Lembramos a primeira Guerra Fria como pequenos e sérios conflitos e uma corrida por armas nucleares, talvez também uma corrida espacial. A segunda Guerra Fria será diferente. Não acredito que teremos muitas pequenas guerras. Acho que a competição não vai ser por armas nucleares, mas no ciberespaço. Também em inteligência artificial, será com características diferentes, porque a China é uma grande economia, o que a URSS não era. Será uma dura competição para os EUA vencer. A China parece um rival tecnologicamente potente.
O senhor cita a questão tecnológica. O Brasil está sob pressão de EUA e China diante do interesse da empresa Huawei em ampliar seus negócios no país, por conta da tecnologia 5G. Por um lado, a China é o principal parceiro econômico do Brasil. De outro, os EUA, os mais importantes aliados políticos no continente. Que conselho o senhor daria aos tomadores de decisão brasileiros? É possível ficar neutro?
Muitos países na Guerra Fria 1 eram não alinhados, Índia, Iugoslávia e outros. O movimento dos não alinhados foi uma importante parte da Guerra Fria 1. Então, sim, a resposta curta é perfeitamente possível. Particularmente para um país como o Brasil, o qual não está em uma situação estrategicamente crucial. Há pontos de vantagens para a América Latina como um todo. A presença chinesa impõe diferentes desafios em relação aos soviéticos. Os soviéticos apoiaram movimentos revolucionários e queriam vê-los no poder. Os chineses tem uma face oportunista ao apoiar o regime na Venezuela, mas estão mais interessados em poder econômico na região. O risco é muito menor para a América Latina do que na primeira Guerra Fria. Também penso que, quando você é uma grande economia, como o Brasil, você tem algumas vantagens, mais do que outras na região. China é muito dependente da importação de comida. E o Brasil é grande parte disso. O Brasil também não depende dos EUA para sua segurança, não é a situação dos países europeus e asiáticos. De muitas formas, é mais fácil para o Brasil ser neutro ou não alinhado. Em muitos aspectos, o Brasil está melhor localizado nessa Guerra Fria.
É difícil prever, mas é difícil ver Bolsonaro sendo reeleito. O que podemos prever é um crescente desespero de Bolsonaro, tentando imitar Trump, lançando dúvidas sobre a legitimidade da próxima eleição. Mas isso não funcionou com Trump, e não acredito que irá funcionar muito para Bolsonaro
O senhor mencionou em entrevistas que apoiou o presidente Jair Bolsonaro. O senhor acompanha a política brasileira? Arrepende-se?
Eu tinha a visão, no período pré-pandêmico, de que havia uma estratégia crível para a economia brasileira. O problema com a estratégia é que ela não foi construída para o período de pandemia. Tem sido muito difícil manter qualquer política econômica desde que a pandemia explodiu. Acho que a mídia ocidental critica Bolsonaro sem olhar de forma próxima suficiente como o Brasil funciona. Bolsonaro governa em parceria com forças poderosas do Congresso brasileiro. E a constelação política central ainda é muito poderosa à medida que se tornou cada vez mais influente no curso da crise. Bolsonaro não é mais capaz de controlar a direção política diante da pandemia. Então, acho que grande parte da cobertura ocidental a respeito do Brasil é muito simplista. Você pode dizer que o Brasil vai muito mal, com exceção de outros países, como o Peru, por exemplo. Mas, economicamente, o Brasil está se saindo muito melhor do que os outros. Eu não acho que, como ela (mídia) concluiu, que há um completo desastre no Brasil, comparativamente com o que vem ocorrendo em termos de desastre global. E cada país tem de manejar a pandemia de seu jeito, tentando equilibrar a saúde pública e o problema econômico. Na realidade, o Brasil não está indo tão mal. A taxa de mortes é alta, mas economicamente o Brasil está fazendo melhor do que muitos outros países da região. Então, o que vem depois? É difícil prever, mas é difícil ver Bolsonaro sendo reeleito neste momento. O que podemos prever é um crescente desespero de Bolsonaro, tentando imitar Trump, lançando dúvidas sobre a legitimidade da próxima eleição. Mas isso não funcionou com Trump, e não acredito que irá funcionar muito para Bolsonaro.
Na imprensa estrangeira, a reputação do Brasil está deteriorada: queimadas na Amazônia, negacionismo…
Não acredito que o editorial do New York Times ou da BBC afete Bolsonaro. Há intensa caricatura do país e da política. Você pode dizer o mesmo dos EUA, porque a imagem provavelmente piorou pela maneira como a administração Trump era retratada no Exterior. Talvez alguns danos são legítimos, mas acho que a tendência de muitos jornalistas ocidentais de comparar líderes populistas com fascistas é uma leitura errada. Os populistas são populares, é como eles se tornaram eleitos. Não acho que o populismo é o mesmo que fascismo. Há diferenças de políticas e táticas. O que está ocorrendo não só no Brasil, nos EUA também, no Reino Unido e em outros países, é que líderes populistas chegam ao poder. Na Hungria, por exemplo. É preciso ter cuidado com comparações históricas. Populismo não é fascismo.
Muitos pesquisadores dizem que a democracia está em perigo, usando os exemplos de Trump, Victor Orbán na Hungria, Bolsonaro no Brasil, Maduro na Venezuela...
Não…
Eu me refiro à ascensão das chamadas democracias iliberais.
Isso é para um enredo que não se sustenta quando você olha os dados. Fareed Zakaria (cientista e jornalista indiano especializado em relações internacionais) previu a erosão da democracia liberal 25 anos atrás. E não houve grande mudança. Não houve um grande número de países que se tornaram liberais ou antidemocráticos no último quarto de século. Não compro a ideia de recessão da democracia, embora eu tenha grande respeito por meu colega Larry Diamond (sociólogo, pesquisador da Universidade de Stanford). Porque eu vejo os números, há mais pessoas vivendo em democracias do que havia nos anos 1990. Falam sobre Rússia e Turquia, mas já eram democracias iliberais nos anos 1990. Na América Latina, a ascensão do populismo não produziu muitas baixas à democracia. O que vejo é um tipo diferente de fotografia no qual há diferentes formas de democracia. Há as muito, muito liberais. Outras mais autoritárias, mas mesmo Victor Orbán (primeiro-ministro húngaro) precisa de eleições ainda. Na maior democracia do mundo, a Índia, você pode não gostar de Narendra Modi (primeiro-ministro indiano), mas o BJP (Partido do Povo Indiano) chegou ao poder com um resultado justo no Congresso. É importante não ter uma expectativa irrealista, nem todo país vai se tornar a Dinamarca. Nem acho que seria uma boa ideia. As pessoas sempre dizem que o que ocorreu nos anos 1930 estaria ocorrendo de novo. A crise financeira é como 1929, se há partidos de extrema-direita em Paris, é 1933, se vai haver uma guerra, é 1939. Nosso tempo não é o dos anos 1930. O mundo é muito, muito diferente. Análises que têm como base os anos 1930 são inúteis.
O Talibã volta ao poder no Afeganistão. Como o senhor avalia as guerras deflagradas pelos EUA nos últimos anos?
Eles gastaram bilhões, trilhões de dólares se você unir Iraque e Afeganistão, e o resultado parece ser mínimo. É tentador dizer que foi perda de tempo. Acho que não está certo. No final, as guerras ajudaram a um sustentável equilíbrio no Iraque e no Afeganistão. A administração Obama saiu do Iraque, o que tornou o país muito mais instável. E a administração Biden saiu do Afeganistão, que fez com que o Talibã de novo voltasse ao poder. Eram erros evitáveis. O Iraque não vai ser a Dinamarca, para usar o mesmo exemplo em outro caso. O tema era erigir lugares mais seguros, a partir do ponto de vista dos EUA, também do ponto de vista de estabilidade regional. Não fizemos isso, como a insurgência no Iraque e Afeganistão mostra. Os EUA têm feito a mesma coisa há quase 15 anos, e países esperam milagres acontecerem em curto tempo. E eles (governos dos EUA) desistiram, partindo, deixando a população local para pagar o preço. Os preços foram incrivelmente caros para as pessoas do Vietnã do Sul (após a Guerra do Vietnã e a tomada de Saigon pelas forças comunistas). E será muito alto para as pessoas do Afeganistão, em especial para as mulheres. Os EUA irão olhar para outro lado, foi o que fizeram em 1975 depois que o último helicóptero partiu (do Vietnã do Sul). Acho que isso é vergonhoso. Muito vergonhoso o fato de os EUA continuarem nesse caminho. Quando existem lições diretas da história que deveríamos ter aprendido. A lição número 1 é: não publique a data de sua partida.
Niall Ferguson no Fronteiras do Pensamento
• Niall Ferguson estará no Fronteiras do Pensamento 2021 no dia 13 de outubro.
• Os demais conferencistas são Jared Diamond (25/8), Steven Pinker (8/9), Anne Applebaum (29/9), Margaret Atwood (27/10), Yuval Noah Harari (10/11), Carl Hart (24/11) e Pavan Sukhdev (8/12).
• O tema das conferências, neste ano, é Era da Reconexão.
• A inscrição para todas as conferências pode ser realizada em fronteiras.com. Há descontos não cumulativos. Todas as conferências proferidas em língua estrangeira são legendadas em português e podem ser revistas pelos participantes na nova plataforma do projeto até 31 de outubro.
• Acompanhe a cobertura completa de ZH e GZH em gzh.rs/Fronteiras.