Desde que o Talibã voltou ao poder no Afeganistão, no domingo (15), uma foto histórica tem circulado em redes sociais acompanhada de textos irônicos do tipo: "os Estados Unidos alimentaram o "monstro" (o Talibã), que agora se voltou contra eles".
A imagem mostra o então presidente Ronald Reagan (republicano) acompanhado de combatentes islâmicos afegãos (os chamados mujahedins) no Salão Oval da Casa Branca. Era 1983, e a reunião tinha como objetivo discutir os rumos da Guerra no Afeganistão, que durou de 1979 a 1989.
Na lógica simplista da bipolaridade da Guerra Fria, "o inimigo do meu inimigo é meu amigo". Os mujahedins lutavam contra a invasão da URSS, adversário geopolítico dos Estados Unidos à época.
Washington financiava os combatentes islâmicos desde 1980. Ou seja, já antes de Reagan, com Jimmy Carter (democrata). O republicano aprofundou a estratégia de dar apoio militar (por meio da CIA) e financeiro a movimentos contra os soviéticos em países como, além do Afeganistão, Angola, Moçambique e Nicarágua, entre outros.
À época, ironia do destino, o próprio Reagan teria considerado os mujahedins "combatentes pela liberdade". Foi logo depois que o saudita Osama bin Laden, então fundador de uma organização (Maktab al-Khidamat) destinada a recrutar combatentes internacionais e a angariar fundos para a luta contra os soviéticos, passou a ter contato com os mujahedins.
À época, o Afeganistão era um imã de combates estrangeiros pela causa do Islã e também por dinheiro (como o próprio Bin Laden), como o Iraque e a Síria seriam décadas depois.
A associação entre os mujahedins e o Talibã, no entanto, não é tão direta. O grupo que agora volta ao poder foi formado só nos anos 1990 - e não no Afeganistão, mas no Paquistão, em madrassas (escolas corânicas), por isso Talibã significa "estudante".
Após a expulsão dos soviéticos (e cumprido o objetivo americano), os Estados Unidos perderam o interesse pelo Afeganistão que, como hoje, é deixado a própria sorte. O governo que assumiu o poder seria então presidido por Burhanuddin Rabbani, que integrou um dos grupos mujahedins da época do conflito (o Jamiat-e Isami).
Aí começa a lógica da política talibã, baseada em tribos e não no Estado nacional moderno ocidental. O Talibã considerava o governo Rabbani muito "liberal" para padrões islâmicos. Foi assim que, defendendo uma posição extremista, com leitura radical do Islã, mas ao mesmo tempo com a promessa de trazer estabilidade, restaurar a paz e a segurança e erradicar a corrupção, que o Talibã tomou o poder em 1996, implantando seu regime de terror. É como se todo talibã fosse um mujahedin, mas nem todo mujahedin um talibã.
Mais uma ironia, o grupo que agora volta ao poder chega, de novo, com a promessa de levar estabilidade, restaurar a paz e a segurança e erradicar a corrupção.
E mais um sinal de que o Talibã e os Estados Unidos não são assim tão inimigos (essa foi uma realidade talvez apenas após o 11 de setembro de 2001 por abrigar a Al-Qaeda que atacou Nova York e Washington) é que, neste agosto de 2021, mesmo com Cabul ocupada e as cenas de caos no aeroporto, a embaixada americana está preservada. É um sintoma de que alguns dos acertos iniciados por Donald Trump em 2020 e continuados por Joe Biden estão de pé.