A um primeiro olhar, uma entrevista coletiva com membros do Talibã pode soar estranho diante da fama extremista da milícia que volta ao poder no Afeganistão.
Mas não é de hoje que o grupo dá sua versão à opinião pública. Quando as bombas americanas estavam prestes a cair sobre Cabul, em 2001, o grupo reunia jornalistas do outro lado da fronteira, no Paquistão, em geral para negar a guerra iminente, mentir sob sua proteção a Osama bin Laden e sua relação com a rede Al-Qaeda, que havia explodido os prédios nos Estados Unidos.
A novidade é que agora o Talibã, ao menos, aceita sentar diante de entrevistadoras mulheres. Nesta terça-feira (16), como parte de sua nova cara - ao menos como peça de marketing internacional -, um dos responsáveis pela área de mídia do grupo, Mwalawi Abdullaq Hemad, ficou no estúdio com a apresentadora Beneshta Arghand, da mais popular rede de TV afegã, a Tolo.
Em seguida, os barbudos sentaram-se diante das câmeras internacionais para dar uma roupagem 2021 a suas intenções. Chuva de promessas: paz, anistia, sem vingança contra antigos colaboradores do governo pró-EUA e respeito aos direitos das mulheres, que deveriam, segundo eles, voltar ao trabalho. Isso desde que atuassem "dentro dos preceitos do Islã". Sendo assim, vejam só, poderiam, inclusive estudar e trabalhar.
Na névoa de incertezas sobre o futuro do Afeganistão sob o Talibã há pelo menos duas coisas garantias: primeiro, o Talibã tenta passar uma roupagem moderada ao mundo, apesar de seu regime de terror imposto entre 1996 e 2001. Segundo, quando fala em "preceitos islâmicos", o grupo está falando da sharia, a lei islâmica. E aqui, abre-se, uma ampla gama de possibilidades. A legislação, derivada do Alcorão e do hadith, o registro das palavras do profeta Maomé, está em vigor em várias partes do mundo - e ela própria pode ter uma leitura mais liberal ou mais conservadora.
A própria Constituição do Afeganistão, mesmo depois de 2001, durante o governo democrático e pró-Ocidente, se baseava na lei islâmica.
A questão é que há diferentes graduações de sua aplicação - desde preceitos que não se aplicam na prática até versões mais radicais. O Sudão, por exemplo, adota a sharia desde 1983, o apedrejamento continua aparecendo como punição, mas não é aplicado há décadas. Na Nigéria, 12 de 36 Estados usam a sharia para questões criminais, os tribunais podem solicitar amputações, embora muito poucas sejam realizadas. O Catar, país sede da rede Al-Jazeera, por exemplo, continua punindo o consumo de álcool e relações sexuais fora do casamento. Adultério é penalizado com cem chicotadas. E na Arábia Saudita, aliado principal dos EUA no Oriente Médio, depois de Israel, homossexualidade é ilegal e punível com execução, embora a pena real costume ficar "limitada" a espancamento ou prisão.
O Talibã aplicou, quando esteve no poder, sua versão mais radical - tanto quanto a rede Al-Qaeda e o falso emirado do Estado Islâmico na Síria e Iraque. Daí a proibição de mulheres estudarem e obrigação de usarem a burca, a proibição de música - que não fosse religiosa -, televisão e rechaço a bens culturais.
Há milhares de tons no amplo espectro da aplicação da sharia. O que virá com o Talibã, menos de que palavras, só os comportamentos dirão.