Quatro dias depois da nova queda de Cabul, a sensação é de uma certa acomodação no ar, passado o primeiro momento de estupor do mundo diante da retomada do poder pelo Talibã, um dos atores políticos mais cruéis que a história do século 20 testemunhou. Nas falas dos líderes internacionais, nos posicionamentos de governo, o tom é de resignação, quando não de tentar tirar algum proveito do momento.
Primeiro foi a China, como já comentei aqui, a dizer que buscará "relações amistosas" com o Talibã.
Depois, o governo britânico, aliado de primeira dos americanos na Guerra do Afeganistão, em 2001.
O primeiro-ministro Boris Johnson, que conclamou a comunidade internacional a não reconhecer a milícia no governo afegão, na quarta-feira (18), afirmou que o regime "deve ser julgado por suas ações, não por suas palavras". O chefe do Estado-Maior das forças armadas britânicas, Nick Carter, disse que é preciso ser paciente e dar espaço para que o Talibã mostre suas credenciais.
Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden não falou nesses termos. Mas seu "lavar de mãos" denota a percepção de que os Estados Unidos sempre esperaram que o Talibã voltaria, um dia, ao poder - o que não necessariamente exclui a surpresa com a rapidez com que as forças armadas afegãs, treinadas e financiadas ao longo de 20 anos pelos americanos, colapsaram.
Ao inaugurar a versão democrata do America First (como também comentei aqui), diante de uma guerra sem fim, impopular e da qual dois terços dos americanos queriam ver os Estados Unidos fora, Biden também jogou no lixo a doutrina de décadas alimentada por seu partido e republicanos (de maneiras diferentes) sobre a missão americana de expandir a democracia aos confins do mundo - versão contemporânea do destino manifesto.
O objetivo dos EUA no Afeganistão era caçar Osama bin Laden, não construir um Estado, foi o que disse Biden.
Os EUA não devem se achar imbuídos, como cruzados, da bandeira da democracia para além mar, até porque seu próprio sistema foi colocado sob tensionamento no governo Donald Trump, em especial em 6 de janeiro, na invasão do Capitólio.
Tampouco a lógica do Estado-nação moderno deve ser idealizado como modelo "tipo exportação", uma vez que países como Afeganistão, Líbia, Iraque , Síria, entre outros, funcionam com uma lógica diferente.
Mas esses eram os discursos dos governos americanos há décadas.
Aos críticos da saída americana, vale questionar. O que seria razoável? Manter para sempre militares no Afeganistão? Nem o Brasil quis manter seus soldados no miserável Haiti.
Ou as Nações Unidas pensaram em enviar uma tropa de manutenção da paz? ONU que, aliás, não tem dinheiro e, diga-se de passagem, já não detém a mesma legitimidade no mundo atual, como todo o sistema multilateral (leia-se OMS durante a crise do coronavírus), por culpa, inclusive, dos governos americanos, de George W. Bush a Trump.
O Talibã vai montar seu governo. Quem pode, fugirá do país. Quem não pode, irá se resignar.
Por cinco anos o Ocidente já tolerou a regime de terror dos barbudos - entre 1996 e 2001 -, com mulheres tendo seus direitos cerceados, meninas não podendo ir às escolas, execuções em praça pública e destruição de patrimônios da humanidade. Só se levantou contra Cabul porque ocorreram os ataques de 11 de setembro de 2001.
Estamos falando do Afeganistão porque ainda há jornalistas internacionais no país. Mas, quando o último repórter deixar o terreno, a comunidade internacional vai esquecer o que houve lá, como, aliás, havia esquecido nos últimos anos, enquanto o Talibã se regenerava.