
Lá se vão 372 dias desde que o primeiro paciente começou a apresentar sintomas da covid-19, em Wuhan, na China. Um ano e sete dias separam o marco zero da maior tragédia sanitária em um século e a cena da dona Margaret Keenan, de 90 anos, recebendo a vacina da Pfizer/BioNTech no braço esquerdo na manhã desta terça-feira (8) em um centro médico no hospital universiário de Coventry, no centro do Reino Unido . De lá para cá, o que mudou no mundo?
A China ainda tem muito a explicar para a humanidade sobre a origem do coronavírus - teorias de conspiração não passam por essa coluna, mas há dúvidas a serem respondidas sobre a demora do governo comunista em dizer ao mundo o que estava acontecendo, a falta de transparência do regime chinês sobre a gravidade do que estava sendo gestado ali, truculências típicas de autocracias que fedem a mofo nesse fim de segunda década do novo milênio.
A pandemia ensinou que governos podem ser separados entre bons e maus gestores diante de desafios urgentes, que exigem respostas rápidas e, por vezes, dolorosas: Coreia do Sul, Japão e Nova Zelândia aprenderam que, sem um elixir para banir a praga, o jeito era apostar em restrições de circulação - que colocaram em xeque as garantias individuais de democracias - aliadas a testagem em massa e rastreamento de infectados.
Enquanto o coronavírus se espalhava, batendo à porta da Europa pelo norte da Itália, nações do continente ainda fragilizado pelo Brexit se engalfinhavam por respiradores e máscaras, aprofundando os rachas na União Europeia e relembrando as divisões entre Norte e Sul. A História irá julgar a estratégia da Suécia de evitar o lockdown, enquanto, por aqui, na vizinhança do Brasil, Paraguai e Uruguai adotaram medidas opostas, ambas com sucesso. O primeiro com o fechamento à circulação de pessoas, o segundo apostando no bom senso de sua população.
A pandemia também colocou certezas na corda bamba: a eficácia do Estado mínimo é uma delas. Mesmo nações liberais precisaram abrir a mão para gastar, senão para salvar as pessoas, ao menos para reduzir o impacto da crise na economia. O Estado retoma importância no cenário pós-covid-19, quando for a hora de sair da Grande Depressão do século 21. A globalização é outra dessas certezas absolutas que caem por terra: o vírus se favoreceu da livre-circulação de pessoas mundo afora e pôs em dúvida a dependência global de poucos (ou únicos) distribuidores de medicamentos e equipamentos de proteção individuais (EPIs) a ponto de, hoje, se aventar a possibilidade de uma desglobalização.
A crise também aprofundou desigualdades sociais e as revelou: a doença foi mais feroz onde populações não podiam se dar ao luxo de ficar em casa porque precisavam trabalhar para comer - casos de Índia, México, Peru e, em maior ou menor grau, do Brasil.
A covid-19 teria freado o populismo? É cedo para dizer. Donald Trump perdeu a eleição. Os superpoderes de Viktor Orban, na Hungria, duraram pouco. Foram podados pelo parlamento. Benjamin Netanyahu está às voltas com a Justiça de Israel, mas Rodrigo Duterte segue firme nas Filipinas. Narendra Modi também se segura na Índia.
Boris Johnson, no Reino Unido, viveu sua tragédia pessoal na UTI de um hospital de Londres e emergiu de sua quase morte com nova visão sobre a pandemia. Depois de ignorar os sinais obscuros que vinham da porção continental europeia, negar a realidade que assombrava a Itália e a Espanha e manter aberta a economia, imprimiu uma série de medidas - algumas contraditórias - que detiveram o coronavírus. No epílogo desse 2020 tenebroso, abriu mão da vacina de Oxford, orgulho nacional, e iniciou a maior operação logística desde a Segunda Guerra para vacinar 66 milhões de compatriotas com o produto da americana Pfizer.
A ciência que decifrou em semanas o genoma do vírus e em um ano e sete dias nos deu uma vacina ainda tem dificuldades para explicar porque ele se comportou diferente, de acordo com a geografia: enquanto foi agressivo em regiões de Ásia, Europa e América do Norte, poupou, relativamente, a África. Sabe-se, ao menos, que áreas com grandes densidades populacionais se tornaram terreno fértil para covid-19.
Há questões sazonais? A realidade desmente. Enquanto a Europa enfrenta a segunda onda depois de um verão de liberdades, por aqui ela chega antes da estação mais quente.
Entre o paciente 01 na China e a primeira imunizada foram 1,5 milhão de mortes por coronavírus, segundo a Universidade Johns Hopkins até a manhã desta terça-feira (8). 67,7 milhões de infectados. Enquanto pesquisadores se embrenharam nos laboratórios em busca do antídoto mundo afora e para que a cena da dona Margaret Keenan fosse possível (e oxalá a de todos nós, seja possível em breve), profissionais de saúde, exaustos, guardaram as trincheiras nos hospitais em esforços que um dia, espero, o mundo irá lembrar que "nunca tantos deverão tanto a tão poucos". Ironia ou não, frase dita por um britânico, Winston Churchill, há 80 anos.