– Há algo de muito errado em uma sociedade que protagoniza cenas como a de George Floyd e Jacob Blacke.
Na noite de quinta-feira (20), cerca de duas horas antes do aposentado João Alberto Silveira Freitas ser morto no estacionamento do Carrefour, em Porto Alegre, eu pronunciei a frase acima, durante um debate virtual organizado pelo Núcleo de Pesquisa e Documentação da Política Rio-grandense (Nupergs), da Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Falávamos sobre o futuro governo Joe Biden nos Estados Unidos e o racismo americano que lega à História cenas infames e frequentes como as que vimos em 2020 em Minneapolis e Kenosha.
Duas horas depois do debate na UFRGS, João Alberto, negro como Floyd e Blacke, morria espancado na saída do supermercado em Porto Alegre. Refaço minha frase.
– Há algo de muito errado em uma sociedade que protagoniza cenas como a de João Alberto Silveira Freitas.
Há pouquíssimas diferenças nos casos americano e brasileiro. Floyd foi asfixiado por policiais fardados, em horário de trabalho, exercendo técnicas permitidas pela doutrina policial do Estado de Minnesota. Blake foi alvejado pelas costas, na frente da mulher e filhos, também por homens da lei durante serviço em Kenosha, Wisconsin.
João Alberto foi espancado por segurança e por policial militar temporário que fazia bico na zona norte de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
O modus operandi dos agressores é o mesmo. A técnica de imobilizar a vítima com o joelho, como fica visível em novas imagens gravadas por testemunhas no Carrefour e divulgadas nesta sexta-feira (20). João Alberto tem a coluna vertebral pressionada pelo joelho de um dos seguranças, enquanto grita de dor e suplica para que aliviem o peso. Floyd, como o brasileiro, também foi imobilizado pelo joelho do atacante, só que no pescoço, asfixiado até a morte.
Os dois vídeos são muito semelhantes, de um abuso e violência tremendos, que exacerbam a revolta e minha sensação de que há um mal estar na civilização, como seres humanos (humanos?), como humanidade (humanidade?).
O relato de uma das testemunhas que filmaram a agressão afirma que ele pedia:
As palavras de João Alberto ecoam Floyd:
Em comum, há também o racismo estrutural que irmana Estados Unidos e Brasil, países com histórias semelhantes de um passado escravocrata e feridas não cicatrizadas que fazem com que um negro não seja visto da mesma forma que um branco por forças de segurança, legais ou ilegais, armadas ou não, institucionalizadas ou não, na via pública ou dentro de estabelecimentos comerciais.
O poder é branco na América e no Brasil. E, lá e aqui, negro é visto a priori como suspeito.
Nos Estados Unidos, os casos de Floyd e Blake reforçaram o movimento BlackLivesMatter, colocaram em xeque a reeleição de Donald Trump e pressionam autoridades a uma reforma das práticas policiais - ou mesmo o fim das corporações. Mais: trouxeram à tona um debate que, embora não novo, urge: como a desigualdade afeta profundamente a vida dos negros e está na origem de várias disparidades significativas, que vão dos índices de mortalidade materna a diferenças de renda e riqueza que é passada de geração a geração.
Nos EUA, a revolta, a mobilização e o debate não começaram em Minneapolis ou Kenosha. São anos em que episódios de negros sendo espancados pelas forças policiais espocam na mídia, um problema que nem o primeiro presidente negro da história americana, Barack Obama, conseguiu resolver.
No Brasil, negros são mortos silenciosamente nas periferias diariamente. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado. Por que Porto Alegre não vira Minneapolis? Por que o caso gaúcho não reforça movimentos já existentes capazes de mobilizar outras cidades do país, que gerem um debate sobre o racismo e a violência?
Porque, no Brasil, o racismo é pior do que nos Estados Unidos. Porque aqui é ocultado por trás da imagem de um país fundado sob o mito da democracia racial, de que em nosso país não existiria preconceito. Porque é invisibilizado e negado por todos nós.