Você deve ter visto uma imagem que circulava nas redes sociais no ano passado: um sabonete da marca Palmolive sobre uma mesa à frente de uma pilha de centenas de cédulas de bolívares, a moeda na Venezuela. A comparação ilustrava a enorme quantidade de dinheiro necessária para comprar um simples produto de higiene no país esfacelado pela inflação de 9.585% ao ano.
Tive contato com essa realidade quando desembarquei em janeiro em Caracas para cobrir a crise: o papel higiênico era racionado no hotel e, para conseguir um chip de celular, era necessário ficar três horas na fila de um shopping fantasma, com lojas e prateleiras vazias.
Lembrei dessas cenas nesses dias de coronavírus em que o governo do presidente Jair Bolsonaro anunciou o fechamento da fronteira com a Venezuela.
Se você se preocupa se vai faltar álcool gel nas farmácias do Rio Grande do Sul, imagine o simples cidadão venezuelano que ou não tem dinheiro suficiente para comprar um sabonete ou o produto já não existe nos supermercados. Não hoje por causa da pandemia. É assim há pelo menos um ano e meio.
A crise deflagrada pelo coronavírus é aguda na Europa rica e em outros países do Hemisfério Norte, mas só saberemos seu real impacto global quando ela chegar – e já chega – com peso ao chamado sul global, especialmente África e América.
A falta de produtos é uma face da crise venezuelana. Há outras: faltam UTIs, a energia elétrica é intermitente inclusive nos hospitais e 80% da população têm algum grau de desnutrição, situação que expõe com mais facilidade o corpo humano ao vírus. Mais: uma das consequências do êxodo no reino de Nicolás Maduro é que, a população que ficou, é basicamente formada por idosos e crianças – faixas de risco do coronavírus. Adultos em condições de trabalhar deixaram o país tendo como destinos principais Colômbia, Brasil e Equador em busca de trabalho e dinheiro para enviar para casa.
O regime Maduro pediu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) uma ajuda de US$ 5 bilhões (R$ 25 bilhões) para lidar com o coronavírus. A última vez que o país tinha solicitado recursos ao FMI foi em 2001. Não levou. Por quê?
1 – Os Estados Unidos não reconhecem o governo Maduro, entendem que Juan Guaidó é o presidente.
2 – O governo americano é o principal acionista do FMI.
"Infelizmente, o Fundo não está em posição de considerar esse pedido", disse um porta-voz do FMI em comunicado enviado à agência de notícias France Presse.
Há ainda todos os motivos para se questionar as estatísticas oficiais da Venezuela em se tratando de um regime autoritário como o de Maduro. A OMS usa dados fornecidos pelos governos para seus balanços diários. Segundo a entidade, há nesta quarta-feira (18), 36 casos confirmados de coronavírus no país. Zero mortes. Como em toda ditadura ou em nação não livre, como a China, a Rússia, o Irã, a Síria, a Arábia Saudita, esse número deve ser bem maior. Talvez nunca saibamos.
Estatística confiável é o primeiro indicador na hora da prevenção e do combate às epidemias. Outra é comando unificado. Os pobres venezuelanos além de não saberem o tamanho da epidemia em seu país, não sabem sequer a quem seguir instruções. Têm dois presidentes.
Sim, a situação no Brasil é de atenção e de cuidados redobrados. Mas, se faltar álcool gel na sua farmácia mais próxima por algumas horas, tente ter empatia. Pense nos venezuelanos e que lá também faltam água e sabonete. Há anos.