A mudança do cenário geopolítico no continente a partir da posse de dupla Fernández-Fernández (como a chapa com Cristina Fernández de Kirchner foi chamada durante a eleição de outubro) não se dá apenas pela azeda relação a que assistiremos com o Brasil, principal parceiro comercial dos argentinos.
Enquanto aqui o presidente Jair Bolsonaro prega o alinhamento estratégico com os Estados Unidos de Donald Trump, o governo kirchnerista deve marcar posição de autonomia em relação aos americanos — postura já adotada nos anos K no poder.
A proximidade de Fernández e Cristina com o regime de Cuba coloca o novo governo argentino em rota de colisão com Washington — e, por tabela, Colômbia, Equador, Chile, Peru, a presidente interina da Bolívia, Jeanine Añez, e os parceiros do Mercosul (Brasil, Paraguai e o futuro mandato uruguaio de Luís Lacalle Pou). A relação do governo argentino com a China — se passar de uma parceria apenas comercial para um alinhamento estratégico e político — também será decisiva para maior distanciamento em relação aos EUA.
De novo, a Venezuela será o palco concreto onde essas divergências irão se materializar. Macri estava ao lado dos aliados de centro-direita que pressionam pela saída de Nicolás Maduro do poder. Fernández, ao contrário, defende uma solução negociada para a crise.
O novo governo não deve deixar o Grupo de Lima -reunião de 14 países das Américas para discutir a crise no país caribenho-, mas também não chamará Maduro de ditador nem reconhecerá Juan Guaidó como presidente interino. Fernández reconhece os abusos de direitos humanos apontados no relatório da ONU realizado pela alta comissária Michelle Bachelet, mas apostará na saída da crise por meio do diálogo e da não-interferência.
As divergências entre Bolsonaro e Fernández colocam os dois vizinhos no momento mais tenso das relações em décadas. As feridas da campanha são praticamente incuráveis: o argentino chamou Bolsonaro de misógino e visitou Luiz Inácio Lula da Silva na prisão em Curitiba; o brasileiro, em visita ao Rio Grande do Sul, disse que a Argentina estava prestes a se tornar uma Venezuela se a "esquerdalha" voltasse ao poder.
Ex-governador da província de Buenos Aires de 2002 a 2007, o chanceler Felipe Solá tem prometido evitar de qualquer maneira que a ideologia seja parte do vínculo entre os dois países e se comprometeu a encontrar maneiras de conviver e dialogar. Do lado de cá, não há sinais de degelo.