Diretor do jornal El Nacional, um dos últimos diários independentes em atuação na Venezuela, Miguel Henrique Otero lidera seu periódico a partir do exílio, em Madri. Ele precisou deixar o país em 2015, depois que o jornal publicou uma notícia sobre uma investigação aberta por um promotor americano contra o então presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, hoje o número 2 do governo de Nicolás Maduro. Tornou-se persona non grata. Se pisar na Venezuela, pode ser preso.
De fora, transformou-se em um dos mais duros críticos contra o regime chavista-madurista, que tenta, de forma sistemática, sufocar os meios de comunicação profissionais.
Homenageado com o Prêmio Liberdade de Imprensa durante o Fórum da Liberdade deste ano, que ocorre na PUCRS, ele participou nesta segunda-feira da mesa "Um novo trajeto para a América Latina", com Carlos Mesa, ex-presidente da Bolívia, e Ricardo Gomes, vereador de Porto Alegre (PP) e ex-presidente do Instituto de Estudos Empresariais (IEE). No sábado à tarde, conversou com a coluna sobre a polarização política na América Latina, censura à imprensa e as eleições presidenciais de maio em seu país, que serão boicotadas pela oposição:
Após um onda de governantes de centro-esquerda, na primeira década do século 21, a América Latina vive um avanço de regimes mais conservadores. A Venezuela está isolada?
O governo da Venezuela está em queda, mas o problema na América Latina é de distribuição de renda. A desigualdade é terreno fértil para o populismo e para esses tipos de regime. Enquanto a América Latina não gerar uma sociedade igualitária, na qual setores populares possam sentir-se beneficiados pelo crescimento, esses tipos de regime são possíveis. Lamentavelmente, a América Latina é um continente onde quase metade da população vive em condições marginais, uma população gigantesca à margem do crescimento e dos benefícios.
Qual o risco de que surjam outros líderes messiânicos?
Temos o caso do México, com Obrador (Andrés Manuel López Obrador, candidato da esquerda às eleições presidenciais de 3 de junho). A probabilidade de que ganhe as eleições é muito alta. Vamos ter ali uma situação similar (à Venezuela).
Houve uma ocasião na Venezuela em que a oposição estava muito perto de ganhar força. Quando Maduro virou a mesa?
A Venezuela não é um regime autoritário normal. O instrumento democrático para substituir o regime se demonstrou muito difícil de ser aplicado. Tudo o que tem a ver com diálogo, com eleição, o governo buscou uma maneira de que não se converta em mecanismo de substituição do regime. Primeiro, é uma ditadura, mas não é uma ditadura tradicional, normal. É uma narco-ditadura. São gente que está presa ao poder. Eleição e diálogo são regras do jogo democrático.
Por essas regras não tem condições de Maduro sair?
Tem se mostrado que não.
E qual a saída, então?
A questão é qual será o mecanismo de saída. Como vai ser o "Dia D". É uma coisa sensível. Há o modelo que todos queremos, democrático, do diálogo, das eleições. E Maduro tem demonstrado que sequestrou as instituições. Essa não é uma saída possível. O mundo inteiro se deu conta disso. Poucos democratas importantes no mundo acreditam na possibilidade de saída do regime, ao menos a curto ou médio prazos, por meio de um mecanismo democrático, de uma eleição.
Que outras saídas existem?
Há três saídas. Todas pelo modelo de confrontação. Uma é a pressão social, o povo nas ruas tirar o regime. Mas, para isso, Maduro e o chavismo construíram barreiras muito fortes: a utilização de coletivos, que são exércitos paramilitares de controle social, basicamente formados por funcionários públicos disfarçados de grupos populares espontâneos, armados até os dentes, que manejam sua ação com terrível impunidade e geram terror nos setores populares. Além disso, utilizam da fome, com essas caixas de comida para ter a população do lado deles, que é um modelo cubano. Então, a convulsão social é possível, mas não é fácil. Depois, tem o golpe militar. Isso ocorreu na América Latina 50 vezes, não é uma coisa nova. Mas, na Venezuela, os militares têm algumas características complicadas para uma ação. A inteligência militar na Venezuela está nas mãos dos cubanos. Não é um braço das forças armadas, é um braço das forças armadas cubanas. É como se a Venezuela fosse um protetorado sem ter perdido uma guerra, porque todas as áreas estratégicas estão sob o comando dos cubanos. A terceira saída seria a "invasão da Normandia".
O que o senhor chama de "invasão da Normandia"? Uma invasão à Venezuela? Por parte de qual país, Estados Unidos?
Por EUA, Brasil, Peru. A Venezuela está cercada por exércitos. Exércitos colombiano e brasileiro estão mobilizados na fronteira, os EUA têm um discurso militarista sobre a Venezuela. Mas nunca vai ocorrer "a invasão da Normandia". Essa é uma coisa de imaginação, do passado. O que pode ocorrer é uma mescla de tudo. Pode ocorrer uma rebelião militar, o dia D, com apoio por parte da população. O dia D mais um uma intervenção humanitária. Não é "a invasão da Normandia". Mas se as pessoas começam a morrer de fome, uma situação terrível de sofrimento, pode ocorrer uma intervenção humanitária. O que está acontecendo na Venezuela é inconcebível. Nunca ocorreu nem no Haiti, quando do terremoto. Um país onde há 4 milhões de pessoas que saíram correndo do país, onde não há remédio para ninguém e onde a alimentação está sujeita a essas caixas de comida que o governo manipula politicamente, onde há sofrimentos gigantescos de desnutrição. Um venezuelano normal perdeu 10 quilos em dois anos. Isso é um momento único, excepcional para um país que é o mais rico da América Latina. É uma ditadura acompanhada de um processo de destruição do aparato produtivo do país.
Pessoalmente, como é dirigir o seu jornal estando fora do país?
São ditaduras pós-modernas, é uma ditadura que permite algumas janelas. Ou seja, o jornal El Nacional publica tudo. Mas, ao mesmo tempo, estamos sujeitos a grande repressão. Nosso conselho editorial está fora do país, há problemas no abastecimento de papel imprensa, ataques contra a sede do jornal, ameaça permanente contra o jornal e contra jornalistas, que tiveram de ir embora do país.
Há também jornalistas ameaçados nas ruas, ou agredidos, como ocorreram casos nos arredores da sede do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, durante a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no fim de semana?
Sim, mas lá (na Venezuela) é uma coisa sistemática. Aqui, ocorre com Lula, mas Lula não é governo. É diferente. Há todo um quadro de repressão administrativa, tributária, publicitária que fez com que, na Venezuela, não existam mais jornais independentes. O único que existe somos nós. Os outros grandes jornais foram comprados pelo governo com dinheiro público. O resto está em plataformas web. Os jornais regionais independentes, quase todos, viraram plataformas web. Tiveram de desaparecer como jornais impressos.
De Chávez a Maduro, como foi a evolução da censura e dos ataques aos meios de comunicação?
É uma continuidade. As leis de censura às rádio e às TVs foram feitas por Chávez. Com isso, ele acabou com as rádios e TVs. A utilização do papel (imprensa), abastecimento, foi obra de Chávez. Com relação à repressão direta, Chávez começou, mas este (Maduro) é muito mais repressivo. É a continuidade de um modelo populista que não aceita o jornalismo livre, mas que não atua como as ditaduras tradicionais, que silenciam a todos. Na Venezuela, estamos nós (El Nacional) e toda uma plataforma na internet por meio da qual as pessoas se informam. Eles (as autoridades) tentam silenciá-los, mas não conseguem. O que fazem? Bloqueiam páginas web, atuam contra os tuiteiros, os prendem. Mas, quando tens 5 milhões, 10 milhões (de pessoas) com smartphones, isso não é mais possível.
Aqui, no Brasil, estamos passando por um clima de polarização, algo que vocês conhecem bem. Há paralelos?
Sempre há risco do populismo nesses países. A essência do regime Chávez está no Foro de São Paulo. O germe ideológico não está em Cuba. E tem como terreno fértil a má distribuição de renda. Há setores massivos excluídos da sociedade, sempre propensos a que um populista lhes convença de qualquer coisa. Há uma tendência na América Latina, um caminho à direita, em defesa do livre-comércio, mas se essa tendência não resolver os problemas, dentro de um tempo, voltará (governos supostamente populistas).
Esse sentimento de boa parte da população de descrença na política tradicional, pode fazer surgir figuras que se apresentam como apolíticos, líderes messiânicos ou empresários como Donald Trump nos EUA?
O problema dos apolíticos populistas é o extremo: um populista que toma o poder e destrói as instituições. Aqui, (no Brasil) há instituições, por isso Lula foi preso. Na Venezuela, não há, Chávez as destruiu. Não existe sistema judicial, eleitoral, não existem instituições. Ele as converteu em apêndice do Executivo. Se olhares as ditaduras latino-americanas, inclusive as nossas, com Marcos Pérez Jiménez, os sistemas judiciais foram mantidos, não foram transformados em apêndice do Executivo. Eles criaram uma estrutura político-repressiva policial acima do sistema judicial. Atuam arbitrariamente.
Quando foi a última vez que o senhor esteve na Venezuela?
Fui embora há três anos. Estava em Israel quando publicamos que um promotor federal de Nova York havia aberto uma investigação contra Diosdado Cabello (então presidente da Assembleia Nacional venezuelana, aliado de Chávez) por narcotráfico. Nós publicamos. No dia seguinte, todo mundo publicou. Cabello me processou por difamação.
Desde então, o senhor não voltou?
Não. O governo espanhol me deu nacionalidade por uma política de Estado. Se és um dissidente e vai a uma embaixada da Venezuela, não lhe dão passaporte. Minha esposa está comigo, mas os filhos ficaram na Venezuela.
O que o senhor espera da eleição presidencial do mês que vem na Venezuela? Mais poder a Maduro?
Quando eles elegeram a Assembleia Nacional Constituinte, em junho do ano passado, deram um golpe de Estado. Todas as decisões da Assembleia são tomadas dentro de uma violação da Constituição. Essas eleições foram convocadas, mas os líderes mais importantes da oposição estão inabilitados. É uma eleição que ninguém reconhece. Conseguiram que um líder meio chavista se candidate, Henri Falcón, para que haja uma oposição. Mas é uma oposição tutelada, que ninguém reconhece internacionalmente. O governo está sofrendo com algumas características que antes não havia: deram um golpe de Estado com a Assembleia Nacional Constituinte, a economia chegou a uma catástrofe e, hoje, o mundo vê a Venezuela como uma ditadura. Não é um tema de solidariedade. Trata-se de um narcoestado. Cerca de 60% da cocaína que entra na Europa vem da Venezuela, e vai por manejo gerencial do Estado. Os países não apenas veem a Venezuela como ovelha negra no aspecto da democracia. Erdogan (Recep Tayyip Erdogan, presidente turco) tem metade dos jornalistas presos. Mas, no caso venezuelano, nas nações nos veem como um país que está afetando os outros com o narcotráfico e enviando milhões de pessoas para fora. Não é como na Síria, com uma guerra, onde caem bombas e as pessoas vão embora porque podem ser atingidas por uma bomba. Na Venezuela, a bomba é o governo e a fome. Uma coisa absurda, em um país tão rico no qual as pessoas não tenham o que comer.