Se o Rio de Janeiro sempre foi e provavelmente sempre será o tambor do Brasil, o Flamengo se tornou, mais do que nunca, a representação fiel do melhor e do pior que se pode ver no cotidiano deste país. Não é possível elogiar a gestão do clube carioca sem abrir uma vírgula para lembrar, vergonhosamente, que não houve ainda acerto com todas as famílias dos meninos mortos no Ninho do Urubu.
Pais e mães sempre partiram do princípio de que deixavam seus filhos dormindo no centro de treinamentos do Flamengo e todos eles acordariam no dia seguinte para café da manhã e treino. Não haverá pagamento suficiente para o fato cruel de que um dia amanheceram carbonizados. Mas a responsabilidade é do Flamengo. E o único ressarcimento possível é financeiro.
A direção de um clube que teve receita próxima de um bilhão de reais no ano passado não tem direito de regatear preço de vida humana. Falta de compaixão, de solidariedade, de visão do outro, pecado capital deste Brasil de 2020. Um dos mais específicos exemplos está justamente neste episódio. Então, enquanto não houver o acordo com todas as famílias, o colunista não se dará o direito de só elogiar a espetacular gestão de futebol do Flamengo.
Mas este elogio é justo. Eduardo Bandeira de Mello, o presidente anterior, pagou pela inexperiência na área do futebol e só conquistou campeonato estadual e uma Copa do Brasil. Fora do campo, repactuou dívidas e passou a gerir com seriedade e honestidade todo dinheiro que entrava. Em paralelo, viu surgir da categoria de base jogador talentoso que pudesse ser vendido para a Europa por valores extraordinários.
Vinícius Júnior, depois Paquetá foram os mais notórios, mas o zagueiro Léo Duarte e o meia Reinier também renderam dinheiro bom para que o Flamengo pudesse contratar grandes jogadores e mantê-los. Mais do que isso: aumentou a qualidade do elenco para 2020 e renovou com o técnico Jorge Jesus. Os valores são indecentes se comparados com a média de ganhos do trabalhador brasileiro. Porém, no contexto do Flamengo, com receitas e despesas equilibradas, faz sentido. Competência também se vê no Brasil em tantas e tantas empresas bem-sucedidas e alguns governos sérios e bem avaliados pelos eleitores. O Flamengo, de novo, sintetiza o que há de melhor no país.
O casuísmo e o oportunismo que levaram o presidente do Flamengo a se aproximar do presidente da República põe o clube em situação constrangedora. Não por ser Bolsonaro. Troque por qualquer outro presidente de antes ou os que virão e conclua que não se deve misturar a marca do clube mais popular do país com a figura de um político no exercício do poder. O Flamengo tem torcedores e torcedoras de todos os matizes políticos. Certamente não estão confortáveis com o rótulo que Rodolfo Landim faz questão de ver colar do clube que dirige com o presidente do Brasil. Oportunismo também se vê aos montes neste Brasil de meu Deus. O Flamengo, outra vez, na figura dos seus dirigentes, simboliza esta mazela brasileira.
A alegria que não tem tradução igual a um Maracanã cheio de flamenguistas lembra o que há de mais genuíno no Brasil. É verdade que qualquer torcida é capaz de proporcionar espetáculos inesquecíveis nos seus estádios na hora de comemorar um título. No entanto, a do Flamengo parece mais barulhenta e mais criativa nas cantorias, nas coreografias e na interpretação da euforia da vitória. Já ouvi de gremistas e colorados que foram ver seu time contra o Flamengo no Maracanã lotado que o espetáculo é mesmo ímpar em vermelho e preto.
Os dirigentes do Flamengo andam cometendo reiteradamente o pecado capital da soberba. Parecem acreditar de fato que inventaram o futebol brasileiro e se tornaram mais importantes do que ele. Não dão pinta de saber trabalhar em conjunto para que os clubes brasileiros tenham uma competição mais rentável para todos. Toda iniciativa que tomam passam a impressão de que não há a menor noção de coletivo nas estratégias que adotam. A soberba é traiçoeira porque corrói o senso crítico. O soberbo acaba por provocar no entorno a formação de uma corte que, para se beneficiar, tenta blindar qualquer má notícia ou versão adversa que possa incomodar os poderosos. Tem sido assim através dos tempos na história das nações. Para o microcosmo do futebol, pode acontecer rigorosamente igual.
No campo, vai ser muito difícil algum time fazer frente ao Flamengo na América do Sul. O time de Jorge Jesus alcançou o estágio em que encantamento e competitividade se harmonizam, se completam e trazem como consequência faixa e faixa, taça e taça. Neste ano, o Flamengo tem peças de reposição quase na mesma qualidade dos titulares em todas as posições. Em torneios eliminatórios, ninguém está proibido de montar uma estratégia competente e restar bem-sucedido contra o Flamengo. Mas nos pontos corridos, a chance de Palmeiras, Grêmio, Inter e outros menos votados fica bem menor. A menos que um deles consiga fazer o jogo perfeito em 80% das 38 rodadas do Brasileirão.