
A interpretação do episódio que culminou com a capitulação de Donald Trump no dia 9 de abril de 2025 ainda vai consumir muitas páginas em livros de história... ou em memória de inteligência artificial. Mas nesta quinta-feira (10), há certo consenso em apontar o sinal de travamento na negociação dos títulos do Tesouro dos EUA como gota d'água para a capitulação.
Os Treasuries, como são conhecidos, costumam ser apontados como o porto seguro dos portos seguros, portanto qualquer trava à negociação era algo impensável. O risco de colapso teria sido explicitado a Trump pelo secretário do Tesouro, Scott Bessent, que se opunha ao tarifaço defendido pelo secretário de Comércio, Howard Lutnick.
Detalhe: a China é o segundo maior detentor desses papéis no mundo, com US$ 761 bilhões, segundo o mais recente relatório do próprio Tesouro americano. O primeiro é o Japão, com US$ 1,08 trilhão, e o terceiro, o Reino Unido, com US$ 740 bilhões. O Brasil também tem esses títulos nas suas reservas, por sua suposta segurança.
Problemas nos Treasuries explicitam que Trump perdeu ao menos boa parte da confiança. Dos mercados, dos demais líderes globais, do comando das gigantescas corporações americanas. E suas declarações recentes levantam outra discussão: quão estável está o líder da maior economia do planeta?
Método ou loucura
O jornal referencial para o mercado financeiro americano, The Wall Street Journal, expressa essa dúvida em um título nesta quinta-feira (10):
"Depois do declínio das tarifas, o mundo pergunta: é método ou loucura?"
Dadas as circunstâncias, é importante observar que a publicação pertence ao grupo de Rupert Murdoch, um fiel apoiador de Trump. A formulação usa como referência uma citação de William Shakespeare em Hamlet, em que outro personagem (Polônio) diz que os atos irracionais do príncipe "parecem loucura, mas têm método".
Horas antes de capitular, o presidente dos Estados Unidos havia comentado a romaria dos pedidos de negociação com uma expressão muito grosseira. Disse que havia uma fila de países "kissing my ass" (perdão, leitores, em português seria algo como "beijando meu traseiro", para usar tradução mais leve).
"Pessoas um pouco assustadas"
Depois do post que marcou a retirada das tropas de tarifas, Trump celebrou a marca histórica da alta da Nasdaq (12,16%), como se ele não tivesse criado o precipício para que as ações despencassem.
— Isso não tem nada a ver com tarifas — afirmou, como se houvesse um ser humano medianamente informado que não soubesse da causa e do efeito.
Em seguida, ensaiou uma confissão:
— Bem, as pessoas estavam exagerando um pouco. Estavam ficando muito agitadas, você sabe, estavam ficando… um pouco assustadas.
Pesquisas feitas depois do anúncio do tarifaço mostraram queda de aprovação de Trump nos EUA e rejeição majoritária à guerra comercial. E essa reprovação veio de investidores que o apoiaram, líderes corporativos, instituições financeiras e pequenos empresários e comerciantes. É bom lembrar que os americanos de classe média tem hábito de investir na bolsa, o que faz perdas de valor de mercado provocarem prejuízos reais a pequenos poupadores.
Em entrevista ao jornal Valor Econômico, Carlos Eduardo Rocha, CEO e sócio-fundador da Occam Brasil, que tem R$ 10 bilhões sob gestão, resumiu:
— Hoje (quarta, 9), se quebrou a confiança nos EUA. Em termos técnicos, isso significa que a taxa de desconto aumentou para você investir no mercado americano.
Os erros em cascata no tarifaço
1. De diagnóstico: para Trump e sua turma de "terraplanistas econômicos", os déficits comerciais dos EUA estão na raiz de todos os problemas americanos e são provocados por países "do mal". A coluna já detalhou que, em muitos casos, esses déficits são provocados por... companhias americanas. A Apple, por exemplo, tem produção espalhada por todo o globo e assina iPhones e outros dispositivos com "Designed by Apple in California". Dá mais valor ao trabalho intelectual embutido e remunerado na venda do que à mão de obra da montagem. Em outro caso, a Nike tem 71 fábricas no Vietnã. São essas empresas que alimentam o déficit dos EUA com vários países, especialmente os que combinam mão de obra barata e de qualidade.
2. De objetivo: em tese, a meta de Trump é forçar empresas americanas –como Apple e Nike – a levar essa produção descentralizada de volta aos EUA para fugir das tarifas punitivas impostas por ele. Primeiro, esse processo leva anos: é preciso construir unidades, comprar equipamentos. E se der certo, vai dar muito errado: a corrida de volta para casa tende a provocar uma demanda difícil de atender, o que pressionaria a inflação já elevada pela entrada de produtos com maior tarifa de importação. Segundo, outra meta é arrecadar mais para financiar os cortes de impostos que Trump planeja fazer sem impactar ainda mais a já pesada dívida dos EUA. Mas não são governos que pagam tarifas. Nem os cidadãos de outros países. Como as tarifas são repassadas aos preços, quem vai bancar o tarifaço será o americano que comprar produtos importados.
3. De concepção: o tarifaço era aguardado ao menos desde a posse. Empresas financeiras, como Goldman Sachs e universidades de primeira linha, como Yale, projetaram, na pior das hipóteses, tarifas lineares de 25%. Engano de quem projetou? Não, de quem concebeu a possibilidade de sobretaxas de até 50% ou 125%, no caso da China..Tarifas mais alinhadas às projeções provocariam efeitos negativos – isso estava embutido nos estudos – mas não o derretimento de mercados que vimos.
4. De elaboração: como lida com tema tão sensível – o comércio do mundo todo – a definição das tarifas deveria passar por estudo profundo sobre as causas dos déficits e os possíveis impactos, certo? Nada, o United States Trade Representative (USTR, principal órgão de comércio exterior dos EUA) simplificou: dividiu o superávit comercial de cada país com os EUA pelo total das exportações dessa mesma nação. E dividiu outra vez por dois, para ser "gentil". A inclusão de uma ilha povoada apenas por pinguins e focas nos 10% da "tarifa padrão" evidencia o grau de amadorismo.
5. De aplicação: o anúncio foi feito em 2 de abril. As tarifas padrão, de 10%, passaram a incidir já no dia 5 e as punitivas chegaram a entrar em vigor nesta quarta-feira (9) antes de serem suspensas. Se era para negociar, o prazo deveria ter sido maior.
6. De avaliação: na Trumposfera, a China acataria sem chiar uma alíquota de 20%, somada à outra de 34%, deopis mais uma de 50% e agora uma nova de 125%. Mas o gigante asiático retaliou e o presidente americano acusou o golpe, dizendo que o país oriental havia "entrado em pânico" e "não sabia jogar".
Os impactos possíveis
Antes do anúncio oficial, bancos, universidades e órgãos de financiamento de exportações fizeram projeções sobre o impacto do tarifaço de Trump. Cada um adotou um cenário diferente para o aumento das alíquotas. A coluna segue mantendo, no final dos textos sobre o tarifaço de Trump, os principais pontos, agora com nova advertência: em tese, o que está valendo é uma tarifa única de 10% para todos, o que traz de volta algum alinhamento às perspectivas.
1. Goldman Sachs, uma das maiores instituições financeiras dos EUA: aumento na probabilidade de recessão de 20% para 45% (atualizado no dia 7 de abril), alta no índice de inflação mais observado pelo Fed de 3,5% (a meta lá é de 2% ao ano).
2. Laboratório de Orçamento da Universidade de Yale, com elevação de 13% na tarifa efetiva dos EUA: aumento de preços entre 1,7% e 2,1%, redução entre 0,6 e 1 ponto percentual no PIB e perdas de US$ 1 mil a US$ 1,3 mil para as famílias americanas.
3. Instituto das Economias em Desenvolvimento, ligado à Organização de Comércio Exterior do Japão (Jetro, na sigla em inglês), com tarifas de 25% dos EUA: queda de 0,6% no Produto Interno Bruto (PIB) mundial em 2027 (perda de US$ 763 bilhões), puxado por tombo de 2,7% no PIB americano de 2027 e forte impacto nos lucros de empresas americanas que dependem de componentes chineses.
4. Universidade Aston (Reino Unido), com tarifas de 25% sobre todas as importações, seguidas de retaliações na mesma alíquota: perda de US$ 1,4 trilhão na economia mundial e drástica elevação de preços nos EUA. Teria efeitos semelhantes ao da guerra comercial de 1930 que aprofundou a Grande Depressão.