Nascida em área periférica do bairro Partenon, em Porto Alegre, Luana Ozemela fez carreira no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Em 2023, foi para o iFood com a missão de criar uma posição de liderança e mostrar os efeitos econômicos e sociais do apoio à formação de entregadores no Ensino Médio. Agora, volta a atuar na ajuda a trabalhadores e empreendedores afetados pelo desastre climático no Rio Grande do Sul, que soma cerca de R$ 18 milhões. Nesta entrevista, detalha as ações e avalia a trajetória difícil, mas crescente, de mulheres negras no mercado de trabalho e em posições de liderança. Esse avanço só será garantido, avisa, se "o ponto de partida for igual para todos", o que ainda está distante da realidade".
Ações de impacto social conduzem a tua trajetória?
Meus pais sempre acreditaram no valor da educação e da consciência racial. É uma inspiração que vem de berço. Explico que minha carreira começa com uma obsessão por dados para justificar investimentos em ações de impacto social. Mas me dei conta de uma limitação. O sucesso não precisa ser medido por ferramentas tradicionais da economia, como redução de pobreza, ou valores monetários, como custo/benefício. Comunidades indígenas não almejam uma meta de renda, porque o mais importante é a autodeterminação e o empoderamento. Tudo é medido no coletivo, o que é complicado para os economistas. As métricas econômicas têm de ser complementadas com as sociais.
Por um lado, cresci em uma casa muito intelectualizada. Mas porta afora, tive experiências de racismo, de ser subestimada, desde a creche até o trabalho.
O que motiva a busca por impacto social?
Experiências pessoais com o racismo em Porto Alegre, que não é uma cidade tão acolhedora para as populações negras, influenciam. Por um lado, cresci em uma casa muito intelectualizada. Mas porta afora, tive experiências de racismo, de ser subestimada, desde a creche até o trabalho. Minha família sempre me conscientizou sobre injustiças sociais e raciais a ponto de lutar contra.
Como começa no iFood?
A partir da minha especialidade em impacto social. Criei a vice-presidência de Impacto Social e Sustentabilidade do iFood não só para potencializar os resultados, mas que também para demonstrar a efetividade das ações. Um dos nossos principais investimentos é em educação de entregadores. Já formamos cerca de 6 mil no Ensino Médio, através de programa em que leva entregadores para a prova do Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos). Em 2023, o iFood já representava 2,3% de todas as pessoas que fizeram a prova no país. Pagamos um curso preparatório de três meses, com aulas online e interativas, e fornecemos ajuda para a pessoa ir fazer a prova. Também apoiamos através da comunicação, lembrando o trabalhador do dia da prova e de estudar.
Além da formação, há outro benefício?
Neste ano, 20 mil pessoas se inscreveram. Existe demanda, mesmo sem fazermos nenhuma promessa de que vamos remunerar mais. O que fazemos é financiar a educação. Não tem absolutamente nenhum custo para entregadores. Além disso, descobrimos que, seis meses depois de completarem o Ensino Médio, entregadores têm uma redução de 15% nas horas disponíveis e aumento em cerca de 20% em ganhos. Agora, estamos tentando entender o que faz com que aumentem sua produtividade. Também tem um valor intrínseco de mobilidade social.
Quais são os outros pilares de impacto social da empresa?
Trabalho digno e meio ambiente, com foco em modais limpos. Hoje, o iFood tem cerca de 3 mil motos elétricas em circulação no país. Vamos escalar até 10 vezes nos próximos anos, contribuindo com a agenda de descarbonização e com o aumento dos ganhos dos entregadores.
O iFood subsidia a compra de bicicletas ou veículos elétricos?
No passado, trabalhamos com subsídio de compra, o que não funcionou, porque a empresa parceira não cumpriu as entregas. Hoje, subsidiamos metade do valor do aluguel mensal de bicicletas, junto a Tembici.
E que tipo de ajuda o iFood dá ao Rio Grande do Sul?
Já investimos cerca de R$ 10 milhões em restaurantes e mercados afetados pela enchente através de redução de mensalidade e adiantamento de repasses. Mas observamos que cerca de 2,5 mil restaurantes não receberam mais pedidos. E cerca de 60% desses restaurantes ainda não voltaram a se conectar no iFood. Vamos manter os adiantamentos de repasses e as isenções de mensalidade até outubro. Para os entregadores, fizemos um repasse emergencial de cerca de R$ 2 milhões. Cerca de 4 mil entregadores foram impactados. Também oferecemos R$ 400 mil em descontos em lojas para entregadores comprarem jaquetas, mochilas, além de auxílio para compra de combustível. Ainda vemos que cerca de 10% dos entregadores não voltaram a se conectar desde o início de maio. Com apoio do Sindimoto (Sindicato dos Motociclistas Profissionais do Estado), atendemos cerca de 300 famílias de entregadores que tinham demandas mais críticas com ajuda de R$ 3,3 milhões. No aplicativo, clientes podem doar para o Estado. Já foram repassados R$ 2,5 milhões para ONGs.
Os líderes precisam ter o compromisso de acelerar essas carreiras. Meritocracia só funciona se ponto de partida for igual para todos, o que não ocorre.
De que forma pequenos negócios também podem implementar ações de impacto social?
Tem de ter foco nas questões sociais mais próximas. Todo restaurante tem um pequeno espaço que pode servir de ponto de apoio para entregadores, por exemplo. O impacto social começa nas pequenas coisas. Acho que se todos os restaurantes pudessem, de alguma maneira, se comprometer a fazer algum gesto que promova valorização e respeito, os trabalhadores ficariam mais satisfeitos e produtivos.
Percebe mais entrada de mulheres negras no mercado de trabalho?
Avançamos bastante. Não só a Lei de Cotas, mas as políticas afirmativas conseguiram fazer em 10 anos o que não ocorrera em cem. Hoje, podemos dizer que as mulheres negras são maioria em universidades públicas. Entre as pequenas empresas, as que mais crescem são de mulheres negras. Os desafios estão depois que entram no mercado de trabalho. Vemos muitas empresas com um contingente significativo de pessoas negras no quadro de funcionários. O iFood já beira os 40%. Mas quando olhamos para cargos de liderança, vemos esse percentual cair pela metade. Precisamos focar agora em desenvolvimento no trabalho, com mais oportunidades, programas e projetos. Os líderes precisam ter o compromisso de acelerar essas carreiras. Meritocracia só funciona se ponto de partida for igual para todos, o que não ocorre.
*Colaborou João Pedro Cecchini