A primeira entrevista da seção Respostas Capitais publicada em 2022 foi com Carlos Nobre. Graduado em engenharia eletrônica no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e doutor em meteorologia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT na sigla em inglês). Era a tentativa de alertar que a mudança climática tem de estar no dia a dia dos negócios. Nobre disse que, se a temperatura da Terra subisse 3ºC em um futuro remoto, haveria um oceano onde hoje está o Guaíba. Lembrar disso tornou mais inquietante ver a imagem do centro de Porto Alegre coberto de água. Agora como "guardião planetário" - integrante do grupo Planetary Guardians, que reúne pesquisadores e ativistas focados em ação climática e proteção de comunidades vulneráveis - e participante do Comitê Científico de Adaptação e Resiliência Climática do Estado, o cientista diz que, se a humanidade tiver "tremendo sucesso", o aquecimento pode diminuir. Lá por 2100.
Há dois anos, o senhor mencionou que havia risco de o Guaíba virar oceano no futuro de longo prazo. O que houve no Estado é sinal do que vem por aí?
Sim, porque eventos extremos como esses do Rio Grande do Sul não têm mais volta nas próximas décadas. Vão acontecer com muito mais frequência devido ao aquecimento global. É preciso se adaptar, e muito. Em escala de séculos, o nível do mar tem risco de aumentar tanto que vai entrar em boa parte da Lagoa dos Patos e chegar ao Guaíba, a Porto Alegre.
Por que devemos estar preparados?
Um dos maiores desafios é realocar pessoas. Ainda em maio, vi entrevistas de pessoas afetadas, ao lado da casa destruída, falando 'não posso voltar, não vou reconstruir minha casa nesse local'. Há centenas de milhares de pessoas que não podem reconstruir suas casas nessas áreas. Foi a primeira vez que vi muitas pessoas falando 'não volto mais'. É um fato novo. Antes, quando aconteciam esses desastres, quase todos queriam voltar aos lugares que habitavam. Como encontrar lugares sustentáveis? É importante evitar políticas que financiem a reconstrução de casas no mesmo lugar. Tudo foi varrido pelos rios e precisa ir para lugares mais seguros.
O RS é um dos Estados com maior índice de desmatamento e os maiores índices de desmatamento na beira dos rios. Então tem de fazer a vegetação voltar, os biomas todos, principalmente Mata Atlântica, mas também o pampa.
Como é possível se adaptar?
Com o que se chama de esponjas urbanas e esponjas rurais. O RS é um dos Estados com maior índice de desmatamento e os maiores índices de desmatamento na beira dos rios. É preciso recuperar os biomas, Mata Atlântica e pampa. Com isso, a vegetação natural nas margens absorve água, impede erosão, evita que a lama corra para o rio, retém água e até baixa a temperatura em ondas de calor. É preciso ter planos governamentais para restaurar a vegetação. Fui convidado pelo governador do Estado a estar no comitê científico do plano de reconstrução, aceitei com muita honra, agora vão ter de ouvir o que a ciência traz.
Por que não tem volta?
Vamos dizer assim, até 2100 não tem volta. É uma questão física fácil de entender. A molécula de gás carbônico, principal responsável pelo aquecimento, tem pouca reação química. Em média, fica 150 anos na atmosfera. Já jogamos tanto gás carbônico que não tem jeito de desaparecer amanhã. Pelo menos nas próximas décadas, só vai continuar aquecendo.
Se a gente tiver um tremendo sucesso, vai começar a baixar a temperatura lá por 2070, 2080. É por essa razão que não tem como esperar que fenômenos extremos deixem de acontecer.
E se conseguirmos reduzir as emissões?
Se tivermos tremendo sucesso, a temperatura vai começar a baixar lá por 2070, 2080. É por essa razão que não se pode esperar que fenômenos extremos deixem de acontecer. Na Arábia Saudita, uma onda de calor provocou 577 mortes em um dia, porque a temperatura chegou a 51,8ºC. Onda de calor mata muito idoso, idosa e criança, menos de 50. Olha o mundo como virou. Olha como o mundo está, e não tem mais volta.
Há alguma ideia de frequência?
É imprevisível. Dados de junho de 2023 e maio de 2024 mostram que a temperatura do planeta aumentou 1,65ºC. Agora, terminou o El Niño, o Oceano Pacífico voltou à temperatura normal. No segundo semestre, começa o La Niña, vai dar uma esfriadinha, mas pouco. A diferença de temperatura não deve baixar de 1,5ºC acima do período anterior à Revolução Industrial. Mas nunca, nunca, em 125 mil anos, a temperatura chegou a esse nível. Só no último período interglacial, quando já havia derretido uma grande quantidade dos mantos de gelo da Groenlândia e da Antártica. Nessa época, o nível do mar estava entre seis e 10 metros mais alto. Por isso, é preciso zerar já as emissões e continuar removendo 10 bilhões de toneladas de gás carbônico por ano. Aí, o nível do mar não continuaria a subir tanto, e desastres diminuiriam em todo o mundo. Mas é um gigantesco desafio.
É, acho que ninguém prestava atenção ao que a gente falava. Ou então pensava 'ah, aquele cientista está exagerando, não vai acontecer isso. Nos dois últimos anos, pela primeira vez estou vendo os negacionistas ficarem meio quietos, viu?
Fazendo alertas há décadas, o que sente quando ouve gestores públicos dizer que foram surpreendidos pela mudança climática?
Um estudo de 2018 mostrava que só 1% dos cientistas climáticos eram negacionistas. Outros 99% entendiam que nós estamos causando a mudança climática. Esse 1% era formado por dois tipos, uns que sustentavam que se tratava de um fenômeno natural, que daqui a pouco acaba, e outro grupo menor acha que não tem problema, a gente se adapta. Hoje, não tem mais como negar. O IPCC foi criado em 1988, participei do primeiro relatório, liberado em 1990. Então, a ciência vem dizendo isso há décadas. Há décadas.
Faltou prestar atenção?
É, acho que ninguém prestava atenção ao que a gente falava. Ou então pensava 'ah, aquele cientista está exagerando, não vai acontecer isso. Nos dois últimos anos, pela primeira vez estou vendo os negacionistas ficarem meio quietos, viu? Não estão atacando, porque os extremos explodiram no mundo inteiro.
Tem milhares de cientistas, agora, tentando explicar porque a emissão de gases aumentou 1% entre 2022 e 2023 e a temperatura subiu 0,2ºC. Não tinha como subir tanto.
Houve antecipação das consequências?
Sim, é uma surpresa que a ciência tenta explicar. O sonho do Acordo de Paris é não deixar a elevação da temperatura passar de 1,5ºC, o poderia ocorrer antes de 2033. No ano passado, a Organização Meteorológica Mundial projetou que seria por volta de 2030. Em 2022, estava 1,2ºC maior. Era para chegar a 1,3ºC em 2023. Tem milhares de cientistas tentando explicar porque a emissão de gases aumentou 1% entre 2022 e 2023 e a temperatura subiu 0,2ºC. Não era para subir tanto. Por que que ficou tão quente? Porque os oceanos se aqueceram muito.
Esse aquecimento seria temporário, pelo El Niño?
Não, o El Niño só aquece o Pacífico Equatorial Centro-Leste. Houve recorde de temperatura do Atlântico, Norte e boa parte do Atlântico Sul, inclusive na costa do RS. É uma das razões porque que um fenômeno meteorológico que existe há milhões de anos, como a frente fria, ficou estacionada no RS. Oceanos mais quentes evaporam muita água, que prolonga e aumenta o volume da chuva. Em 2004, teve o furacão Catarina. Foi o primeiro, nunca havia sido registrado no Atlântico Sul. Era um sistema de baixa pressão extratropical, só que o mar quente gerou muito vapor d'água, formando o furacão.
Idealmente, precisamos zerar as emissões em 2040 e, a partir daí remover uma gigantesca quantidade de gás carbônico da atmosfera. Se conseguirmos, a temperatura não vai passar muito de 1,5ºC. Depois, começa a cair e na segunda metade desse século fica abaixo de 1,5ºC.
O que falta fazer para alcançar esse "sucesso tremendo" que melhora a situação a partir de 2100?
Estive na COP28 em Dubai em dezembro. Os acordos não são feitos durante a conferência, mas meses antes. Quando bateram o martelo, ainda não tinha começado a aquecer tanto. Então, pensei, otimística mas ingenuamente, que a COP28 teria metas mais rigorosas. Não mudaram quase nada. O único avanço foi colocar a palavra 'redução' nos combustíveis fósseis pela primeira vez em 28 COPs. Então, na COP29, no Azerbaijão e, por favor, a COP30 aqui no Brasil, em Belém, é preciso acelerar. Não dá mais para aceitar emissões líquidas zero em 2050. Se for mantido assim, o aumento de temperatura vai passar muito de 2ºC. Idealmente, precisamos zerar as emissões em 2040 e, a partir daí remover uma gigantesca quantidade de gás carbônico da atmosfera. Se conseguirmos, não passa muito de 1,5ºC. Depois, começa a cair e, na segunda metade desse século, fica abaixo de 1,5ºC.
Parece difícil...
Na COP28, sinalizaram triplicar a produção de fontes renováveis, solar, eólica, até 2030. Mas hoje toda a energia de fontes renováveis corresponde a 12% do total. Se triplicar, vai para 36%. Isso significa que, em 2030, ainda haverá grande emissão. Não gosto muito de falar de política, mas sou obrigado. Se (Donald) Trump vencer nos EUA, já anunciou que o primeiro ato será autorizar todas as novas explorações de petróleo e gás natural. O que outros países não tão ricos vão fazer? Cria um clima muito perigoso, aí vamos passar de 2ºC antes de 2040.