Um dos mais reconhecidos cientistas brasileiros, o engenheiro e meteorologista Carlos Afonso Nobre é movido à paixão. Pela Amazônia, pela biodiversidade e, mais recentemente, por bioeconomia e inovação. Foi a voz que a coluna fez questão de ouvir para começar 2022 em clima de otimismo responsável. Nobre avalia que a humanidade está diante do maior desafio de sua história desde o surgimento do homo sapiens: frear a mudança climática. O custo de não fazê-lo, sustenta, será insuportável. Graduado em engenharia eletrônica no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos (SP), onde voltou a morar, fez doutorado em meteorologia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT na sigla em inglês). Coleciona prêmios internacionais e virou referência para estudos do aquecimento global. Pesquisador aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), atualmente é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP e integrante da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN).
As chuvas na Bahia são resultado do fenômeno La Niña, das mudanças climáticas ou de ambos?
Os locais onde o La Niña causa aumento de chuva são Amazônia e norte da Região Nordeste. Neste ano, houve recorde histórico de seca no Sudeste e no Centro-Oeste. Na Bahia e norte de Minas Gerais, ocorre um fenômeno natural nesta época do ano, que chamamos de Zona de Convergência do Atlântico Sul. É uma frente fria que, em vez de ir embora para o Atlântico, estaciona e faz chover muito. Quanto mais intensa é a chuva, menor a velocidade de deslocamento. A gente chama de "natural", mas é intensificado pelo aquecimento global. Existe há dezenas de milhares de anos, mas a mudança climática faz com que a atmosfera mais quente retenha mais umidade e forme chuva mais volumosa. Quando se olha dados de uma década, vê-se que a frequência de chuva intensa aumentou.
Se houvesse zero aquecimento global, mas acabasse a floresta amazônica, cairia entre 20% e 30% o transporte de água para o Sul. A região precisa buscar adaptações a essa mudança que, nas próximas décadas, parece ser irreversível.
Os meteorologistas usam uma expressão, "rios voadores", para falar da influência da floresta amazônica no Sul. Há fundamento técnico?
Sim, a região amazônica tem muita água, e os ventos, nos Andes, batem nas montanhas e viram para o Sul, seguindo a forma da cordilheira. Carregam o vapor d´água que abastece todo o Sul e o Sudeste da América do Sul. Participei de um estudo que mostrou que, quando há seca na Amazônia, há redução na chuva esperada entre julho e setembro no Sul. Como diminui o vapor d'água que os rios voadores transportam, faz com que se reduza a precipitação.
Qual a consequência?
Como temos cerca de 20% da área desmatada, projeções mostram que, se a gente perder a Amazônia, perde capacidade de reciclar água. E perde esses rios voadores, o que vai diminuir a chuva no inverno no Sul. O aquecimento global reduz a chuva na Amazônia, diminuindo o transporte de umidade dos rios voadores. Mas se houvesse zero aquecimento global e acabasse a Floresta Amazônica, o transporte de água para o Sul já cairia entre 20% e 30%. A região precisa buscar adaptações a essa mudança que, nas próximas décadas, parece ser irreversível.
Não é mais uma hipótese apenas teórica. (...) Estamos muito perto do ponto de não retorno da Amazônia.
Falar em "perder a Amazônia" não lhe dá arrepios?
Não é mais uma hipótese apenas teórica. Estamos muito perto do ponto de não retorno da Amazônia. Essas forças todas de transformação, tanto em escala global quanto regional, de desmatamento, degradação, fogo, já provocaram grande modificação. A estação seca está de três a quatro semanas mais longa nos últimos 40 anos. Tornou-se semipermanente. No sul da Amazônia, em uma área de 2 milhões de quilômetros quadrados, há aumento da mortalidade de árvores típicas de clima úmido. A estação seca, que era curta e com alguma chuva, está de 2ºC a 3ºC mais quente. Antes, isso ocorria quando havia El Niño, a cada 15 ou 20 anos. No intervalo, a floresta se recompunha. Nos últimos 17 anos, houve quatro secas muito intensas, em 2005, 2010, 2015/16 e 2020. A única com El Niño foi a de 2015/16. O aumento da temperatura do Atlântico Norte, causado pelo aquecimento global, aumenta a frequência de secas na Amazônia a ao menos duas por década. É o que causou o aumento na mortalidade de árvores.
Qual o resultado?
A Amazônia está perdendo biomassa, carbono. Tornou-se emissora de carbono, não só por desmatamento e incêndios, mas também porque há um número muito grande de árvores morrendo e se decompondo. Se passar desse ponto, em 50 anos mais de 50% da floresta vai desaparecer e dar lugar a gramíneas, arbustos. Vai diminuir o transporte de umidade nos rios voadores.
Mineração ilegal explodiu, nos últimos anos, com o sinal verde do governo federal a qualquer exploração, inclusive a criminosa.
É possível evitar?
Sim, para isso precisamos zerar o desmatamento e a degradação da floresta antes de 2030. E de alcançar as metas superambiciosas do Acordo de Paris, ou seja, não deixar o aumento da temperatura passar de 1,5ºC. É preciso um plano governamental dos países amazônicos, políticas públicas para restaurar mais da metade da área desmatada e parar com a exploração irrefreada da agropecuária. E o maior problema não é a agropecuária: nas últimas décadas, a floresta está em dinâmica econômica controlada pelo crime ambiental. É perfeitamente exequível. A pecuária lá é muito pouco produtiva.
Há alternativa?
O valor econômico dos produtos do sistema agroflorestal é muito maior. Açaí e cacau rendem 10 vezes mais do que a pecuária, e cinco vezes mais do que a soja. Cooperativas modernas conseguiram desenvolver produção com alto valor econômico em muitos mercados internacionais. Não é preciso manter intocada 100% da floresta, mas o modelo bioeconômico da floresta em pé traz muito mais benefício à economia. Não precisa continuar o modelo de baixíssima produtividade e de mineração ilegal, que explodiu nos últimos anos com o sinal verde do governo federal a qualquer exploração, inclusive a criminosa.
É para pensar quão pouco a gente transforma em valor econômico a riqueza da nossa biodiversidade.
Há projetos agroflorestais se multiplicando, mas ainda não são poucos?
Sim, são. Tenho um projeto lá, o Amazônia 4.0, para mostrar que é possível levar tecnologia para agregar valor aos produtos da floresta (clique aqui para saber mais). O primeiro laboratório demonstrativo é da cadeia de cacau e cupuaçu. É portátil, vamos capacitar quatro comunidades com tecnologias baratas a partir de 2023. Queremos criar um ecossistema de inovação, atrair capital e financiamento de bancos. As comunidades começaram a produzir chocolate de forma sustentável, tudo reciclado, sem resíduos. Vamos mostrar que é possível fazer plantas industriais por preços muito acessíveis. E não só na Amazônia. Estive em Gramado, em 2019, e provei a goiaba da Serra. É uma maravilha da biodiversidade, devemos ter mais de 20 espécies de goiaba no Brasil. Depois, soube que a Nova Zelândia é hoje o maior exportador desse tipo. O Brasil tem um potencial enorme. A Amazônia tem a maior biodiversidade do planeta, com 5 mil tipos de fruta, mas todos os biomas têm enorme biodiversidade. O pampa tem a maior biodiversidade de espécies de gramíneas. É para pensar quão pouco a gente transforma em valor econômico a riqueza da nossa biodiversidade.
O que nós, brasileiros, podemos fazer para ajudar?
Essa é uma pergunta essencial. Sou integrante de conselhos de ONGs ambientalistas, e era voz minoritária quando propunha que se atuasse mais na questão da rastreabilidade com foco em consumo responsável. A maioria queria trabalhar na produção e nas cadeias de supermercado. Não é difícil ter uma declaração de rastreabilidade para uma grande empresa. Agora, todas fizeram porque as ONGs vêm perturbando há 20 anos? Não, porque em 2019 os fundos financeiros europeus ameaçaram tirar investimentos. E tiraram, de fato, de quem não conseguiu demonstrar rastreabilidade. Mas há uma enorme desconexão entre a realidade e as pesquisas de opinião, em que 95% dos brasileiros dizem que a floresta tem de ser preservada. Não é uma questão ideológica. Os eleitores de Bolsonaro são todos a favor de proteger, ele é a favor de acabar. Na prática, só vai funcionar quando o consumidor exigir. E só agora começa a ser ver um despertar no Brasil. O consumidor tem de pensar 'eu tenho o poder de salvar a Amazônia, não preciso confiar no governo, nem nas empresas'. Não é verdade que tem de desmatar tudo, se não o preço fica alto. A agropecuária responsável e sustentável é muito mais lucrativa.
É o maior desafio que a humanidade já enfrentou. Se não conseguirmos, vai custar grande disrupção nos ecossistemas tropicais, onde se armazenam vírus, bactérias.
A COP26 foi sucesso ou fracasso?
Nem um total sucesso, nem um total fracasso. Foi importante bater o martelo em que a temperatura não pode subir mais do que 1,5ºC. No relatório de agosto do IPCC, foram relatadas consequências do aumento que já houve, de até 1,2ºC. Com 1,5ºC, os efeitos serão ainda mais extremos. Com 2ºC, esquece. Parece pouco, meio grau. Mas com 2ºC, o planeta perde 95% dos recifes de corais, inclusive os nossos, de Abrolhos. Temos de reduzir as emissões em 45% até 2030, mas em relação a 2010. Só que já aumentaram entre 2010 e agora. É o maior desafio que a humanidade já enfrentou. Se não conseguirmos, vai custar grande disrupção nos ecossistemas tropicais, onde se armazenam vírus, bactérias. Há risco de degelo do permafrost, no Ártico, que manteve vírus desconhecidos congelados por milhões de anos. Nas regiões onde já degelou, na Sibéria e no Canadá, surgiram vírus que não existiam na natureza. Implementar as medidas que assegurem o controle do aquecimento parece quase impossível. Se a Amazônia passar do ponto de não retorno, em até 50 anos vai liberar 300 bilhões de toneladas de gás carbônico, o equivalente a uns oito anos de emissões globais. Isso tornaria praticamente impossível o aumento ficar em 1,5ºC.
O que será preciso fazer até a próxima COP, de 7 a 18 de novembro, no Egito?
Muito, uma das questões é resolver o financiamento. Não foi criado um fundo para reembolsar perdas e danos provocados por ciclones tropicais que afetam, por exemplo, Bangladesh. Qual o percentual de contribuição de Bangladesh para o aquecimento global? Quase nada. O mesmo ocorre em países africanos. Existe financiamento para mitigação e, em pequena parte, adaptação, mas ainda insuficiente, cerca de US$ 79 bilhões quando o compromisso era de US$ 100 bilhões, e a Índia pede US$ 1 trilhão. Nessa parte, não houve avanços. Os países ricos deveriam ser mais generosos e contribuir para que o sul da Ásia, a África e a América Latina convertam suas economias para carbono zero. Jogaram tudo para a COP27. A avaliação global dos cientistas é de grande preocupação.
Se não tivermos sucesso, aumentará a disparidade entre ricos e pobres, crescerá demais a pobreza no mundo. Haverá mais ondas de calor, desastres naturais, quebras de safra agrícola, com efeito maior em populações vulneráveis.
Qual é o cenário mais provável se não for possível frear a mudança climática?
Se não tivermos sucesso, aumentará a disparidade entre ricos e pobres, crescerá demais a pobreza. Haverá mais ondas de calor, desastres naturais, quebras de safra agrícola, com efeito maior em populações vulneráveis. Entre fevereiro e março, o IPCC vai publicar mais dois relatórios, um sobre impactos em adaptação e vulnerabilidades e outro sobre mitigação. Estamos nos aproximando de limites absolutos, um mundo que nunca vimos desde que existe o homo sapiens. Existe possibilidade de adaptação, mas há limites absolutos. Se não houver como salvar a floresta tropical e a temperatura subir 3ºC, o nível do mar vai aumentar 10 metros dentro de mil a dois mil anos. Não há como adaptar de 20% a 25% da humanidade que vive em cidades costeiras. Não tem como construir muros de milhares de quilômetros para conter o oceano. Mais de um bilhão de pessoas terão de abandonar Londres, Rio, Porto Alegre. Onde hoje há o Guaíba, haverá um oceano. Onde você mora será oceano. Espécies vão desaparecer, migrar para zonas elevadas. Será um outro planeta, com condições terríveis, que não vai sustentar 10 bilhões de habitantes.
Acredita na busca de outro planeta para a humanidade, como fazem os bilionários Elon Musk e Jeff Bezos?
Não sei se é uma busca real ou marketing. Embora tenham investido bilhões de dólares em foguetes, não acho que seja muito viável. Mas é preciso observar que ninguém sabe disso com certeza. Um planeta para humanos precisa ter água. E menos de 100ºC, para não evaporar. Se for fora do sistema solar, seriam milhares de anos luz, o que significa que a população teria de se reproduzir durante a viagem. E o foguete precisaria de fusão nuclear, porque não teria energia solar. No sistema solar, a opção seria Marte, que não tem atmosfera. Seria preciso criar um ambiente artificial com oxigênio. Não vejo como fazer isso.