A certa altura das quase nove horas em que detalhes da regulamentação foram dados pela equipe da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária, um dos participantes, o diretor de Programa, Rodrigo Octávio Orair, abandonou por minutos alíquotas e planilhas:
— Meus filhos, é para isso que o papai não fica mais tempo com vocês.
O que Orair detalhava, naquele momento, eram os critérios para definição da cesta básica, um dos pontos que devem gerar mais pressão por mudanças no Congresso. Abaixo, vai ficar claro o motivo da frase para os filhos, mas antes a jornalista que assina esta coluna tinha uma curiosidade: as crianças também "maratonaram" as explicações técnicas?
— Sim, a Tarsila, de oito, e o Martim, de seis, acompanham algumas atividades. Na votação da PEC da reforma tributária, estavam no sofá de casa vibrando a cada voto favorável, como se fosse uma final de futebol - responde o pai coruja.
Há vários pais e mães de crianças nessa faixa etária na jovem equipe de Bernard Appy, que Orair faz questão de caracterizar como "extraordinária" no sentido de "passageira":
— Ninguém vai ficar ali, é uma missão de vida. Vamos aprovar, regulamentar e entregar para a sociedade.
Como se chegou à lista enxuta da cesta básica?
Fizemos três tabelas, por mera formalidade da PEC: a básica, a de produtos hortícolas, também com alíquota zero, e a cesta estendida. Partimos da composição atual e retiramos só os produtos consumidos pelos muito ricos, como bacalhau, foie gras (fígado gorduroso de pato ou ganso, considerado uma iguaria) e caviar. Então, primeiro buscamos garantir que os remanescentes terão redução de tributo. Depois, priorizamos os consumidos majoritariamente pelos mais pobres e a alimentação saudável. Aí, separamos em dois grupos. Os que já são muito pouco tributados e dominam o orçamento das famílias de baixa renda ficaram com alíquota zero, como arroz, feijão, café, farinhas.
E o que ficou na cesta estendida?
Nesse segundo grupo, ficaram os produtos que já têm tributação maior hoje, entre 12% e 19%. E todos tiveram alíquota reduzida para 10,6%. São produtos não tão consumidor majoritariamente pelos mais pobres, porque inclui as proteínas animais, como carnes, peixes - mas não lagosta - queijos, bebidas lácteas. E ainda produtos saudáveis, como tapioca, e alguns regionais, como o mate no Rio Grande do Sul. A ideia foi incluir alimentos in natura e minimamente processados, sem concentração de consumo entre os muito ricos.
O grande dilema da cesta básica é que os mais ricos consomem mais, em quantidade e qualidade, incluídos os alimentos. E os itens mais básicos pesam muito mais no orçamento do mais pobres do que no dos mais ricos.
Como definiram o consumo de pobres e ricos?
Construímos um indicador com base na POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares, feita pelo IBGE) e verificamos quanto cada um desses itens pesa no orçamento de alimentação das famílias mais pobres e comparamos com quanto pesam no orçamento das demais famílias. Por exemplo, a farinha de mandioca tem peso muito mais alto no orçamento nas famílias mais pobres do que nas demais. Ficou com indicador 2, ou seja, tem o dobro do peso do mesmo produto no orçamento de alimentação dos mais ricos.
E porque foi preciso todo esse trabalho?
O grande dilema da cesta básica é que os mais ricos consomem mais, em quantidade e qualidade, incluídos os alimentos. E os itens mais básicos pesam muito mais no orçamento do mais pobres do que no dos mais ricos. Quando se dá alíquota zero para tudo, não diferencia. Dá tanto para quem mais precisa quanto para quem menos precisa. O grande pilar da reforma tributária é a manutenção da carga atual. Se dermos um benefício mais amplo, vamos ter de compensar com aumento de arrecadação de todos os outros. E orçamento familiar não é só alimento, tem água, gás, luz, transporte. Ao priorizar alimentos consumidos majoritariamente pelos mais pobres, tentamos garantir que o máximo possível de benefícios seja assegurado aos mais pobres. E digo 'o máximo possível, porque sempre há algum vazamento para os que menos precisam.
A carne bovina, por exemplo, tem carga total de 13% e vai cair para 10,6%. Se fosse para a cesta básica, teríamos de elevar a alíquota padrão de 26,5% para 27,1%.
Por que as proteínas ficaram fora da alíquota zero?
Não ficaram com zero, mas tiveram alíquota reduzida em relação à atual. A carne bovina, por exemplo, tem carga total de 13% e vai cair para 10,6%. Se fosse para a cesta básica, teríamos de elevar a alíquota padrão de 26,5% para 27,1%. Agora, é sempre uma escolha do parlamento. Nosso papel é qualificar as informações, mostrar a incidência tributária atual, como é o consumo desses itens entre os mais pobres e simular o impacto distributivo, quer dizer, qual faixa de rende vai pagar mais proporcionalmente. A decisão é do parlamento.
Você falou nos seus filhos ao citar um dado impressionante, de que mais da metade das crianças brasileiras está em famílias com renda até meio salário por pessoa.
Essa é a conexão entre o cashback e as crianças. É impressionante. Quando se fala em baixa renda hoje no Brasil, são quase 29 milhões de famílias, 73 milhões de pessoas, o que é cerca de um terço da população, e mais da metade, 55%, das crianças na primeira infância, de zero a seis anos. Todos os estudos de condições de saúde mostram que, se há privações nessa faixa etária, ficam sequelas para a vida inteira. Esse é o grande problema de uma cesta básica muito ampla. Beneficiaria Martim e Tarsila, que não precisam, mais do que esses milhões de crianças que não têm acesso a alimentos que meus filhos têm. Uma política muito ampla pode ser contraproducente.
Em devolução de impostos para os mais pobres, a América Latina está na vanguarda, e o Rio Grande do Sul é uma dessas experiências.
Qual foi o peso da experiência do RS na elaboração do cashback?
Outro pilar da reforma é estar alinhada às melhores práticas internacionais. No ano passado, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) veio avaliar o Brasil e entregou um relatório com um capítulo elogioso à reforma tributária, recomendando o cashback. O FMI (Fundo Monetário Internacional) também recomenda. Em devolução de impostos para os mais pobres, a América Latina está na vanguarda, e o Rio Grande do Sul é uma experiência pioneira, ao lado do Equador.. Também há na Bolívia, na Colômbia, no Uruguai, em diferentes modelos. O Giovani Padilha, auditor fiscal do RS, ajudou. E não tirou do nada, veio de estudo feito em seu doutorado. No Brasil, duas coisas ajudam a viabilizar. Uma é o Cadastro Único, que dá expertise de política social e de informações sobre o público-alvo, além da capacidade de fazer os pagamentos - no RS é via Banrisul, mas em nível nacional temos a Caixa. Outra é o nosso Fisco bastante informatizado. Não chegamos a 100%, mas estamos perto com nota fiscal eletrônica.
Há resistência ao cashback no Congresso, será possível superá-las?
Acredito que sim, com muito estudo e convencimento. É preciso mostrar as consequências. As pessoas às vezes têm má vontade, que é preciso vencer com carinho e perseverança. É um programa diferente, que devolve tributos em contexto de cidadania fiscal. O custo é muito mais baixo do que o de isenções e seletividade. Não tem vazamento para os mais ricos. Na medida em que explicarmos, acredito que vamos convencer. Quando se olha os resultados do RS, mais de 80% das famílias estão usando a devolução de ICMS para comprar, então esse recursos volta para supermercados, padaria, açougues, farmácias. É um dinheiro que melhora a qualidade de vida e volta para girar a economia local. É diferente de quando sobra dinheiro na classe média, aí vai para lazer, férias.
A intenção é que a calculadora mostre também o impacto distributivo de um tratamento especial, se vai beneficiar os 10% mais pobres, ou o segundo, terceiro, quarto décimos, ou os 1% mais ricos.
Mostrar o impacto de eventuais mudanças é o papel da calculadora que está prevista?
A ideia é essa. Estamos trabalhando com o Banco Mundial em um simulador público. Aí pode colocar o bem ou serviço que gostaria que fosse desonerado e verificar que, se dermos benefício para uma coisa, vai aumentar a tributação de todas as outras. A intenção é que a calculadora mostre também o impacto distributivo de um tratamento especial, se vai beneficiar os 10% mais pobres, o segundo, terceiro, quarto décimos, ou os 1% mais ricos. Não temos pretensão. A ideia é qualificar o debate. Quem tem legitimidade para tomar decisões é o Congresso. O que podemos fazer é falar sobre princípios, indicadores, objetivos e providenciar essa calculadora que ajude na tomada de decisão mais qualificada.
E por que não foram definidas as alíquota do imposto seletivo, o "do pecado"?
A intenção foi deixar para a legislação ordinária, a avaliação foi de que amarraria demais se ficasse na lei complementar (modelo em que foi encaminhada a regulamentação). O que se definiu é sobre o que vai incidir: cigarros, veículos poluentes, bebidas alcoólicas e açucaradas. Hoje no Brasil, é o IPI que cumpre essa parte, com parte também no ICMS mais alto. O Imposto Seletivo vai vai assumir esse papel.