Na medida que os debates sobre a reforma tributária avançam, fica mais clara a grande possibilidade de adoção, em todo o país, de um programa testado e aprovado no Rio Grande do Sul. Para ajudar a "vender" as mudanças, o secretário especial da reforma tributária, Bernard Appy, renomeou o Devolve ICMS como "cashback do povo", porque se trata de retornar à população de menor renda parte do imposto cobrado sobre os bens de consumo - uma alternativa mais justa do que simplesmente reduzir a alíquota sobre produtos básicos, que beneficia quem ganha pouco e quem ganha muito. A coluna ouviu Giovanni Padilha, auditor fiscal da Receita Estadual que desenvolveu a metodologia em sua tese de doutorado em Economia Aplicada pela Universidade de Alcalá, de Madri, e Ricardo Neves Pereira , subsecretário da Receita Estadual, responsável pela implantação no Estado. Perguntado sobre a escolha do nome, Giovanni confessou:
— Particularmente, não gosto, mas Appy argumentou que é mais fácil de "vender". Precisava de um nome que facilitasse o entendimento.
A origem
Giovanni estudava há anos a regressividade tributária (maior proporção de impostos sobre quem ganha menos) no Brasil e acompanhava a devolução adotada em países como Canadá e Japão e recomendada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). No auge da implantação da nota fiscal eletrônica, percebeu que era possível unir as duas pontas, relata o auditor:
— Outros modelos são estanques, mas tivemos condições de conectar a tecnologia da nota eletrônica, como instrumento de medição de consumo e aprimorar a lógica. Entre 2014 e 2016, já comecei a fazer um trabalho interno na Fazenda, em 2017 defendi a tese (que recebeu láurea, acrescenta Ricardo). Fizemos debate interno por um ano para ter certeza de que era robusto.
A adoção
Em 2020, na esteira da discussão sobre as alíquotas sobre produtos básicos, o trabalho interno estava maduro e foi proposto o Devolve ICMS. Nessa altura, a proposta já estava na PEC 45, apresentada na Câmara dos Deputados e uma das bases da reforma tributária atual.
— Em 2019, o secretário pediu uma modernização do sistema tributário, e trabalhamos para viabilizar com base no trabalho do Giovanni. Uma proposta era reduzir os benefícios fiscais difusos (para quem precisa e para quem não precisa) e adotar os focalizados (específicos para quem precisa). A questão era 'por que a carne tem de ter alíquota mais baixa, se é comprada pelo rico e pelo pobre?'. É mais vantajoso para a sociedade que não tenha desoneração para todos, mas que se devolva para as famílias de menor renda parte do imposto que pagam. Houve muito ceticismo, diziam que estávamos tirando a desoneração e não iríamos devolver — relata o subsecretário da Receita Estadual.
Hoje, o Devolve ICMS tem quase 607 mil usuários (clique aqui para ver os dados acumulados desde o início do programa) e retorna a famílias de baixa renda cerca de R$ 260 milhões por ano. O repasse mais recente foi feito na semana passada.
Outra crítica no início, acrescenta Giovanni, era de que o programa não alcançaria os chamados "invisíveis" e que entre 15% e 20% dos potenciais beneficiados não seriam encontrados. Atualmente, diz o auditor, só falta alcançar cerca de 5% do público-alvo.
A logística
A distribuição inicial dos cartões "foi um desafio grande no início", admite Ricardo:
— Optamos pela implantação mais rápida com menor custo, com o Banrisul como fornecedor de cartões, com grande rede de agências e 150 mil estabelecimentos que aceitam pagamentos com o sistema Vero. Pelo que acompanhamos, 80% a 85% do montante é utilizado pelas famílias em mercados e retorna em compra de alimentos. Ainda temos apoio dos Centros Regionais de Assistência Social (Cras) e da Secretaria de Assistência Social. Os depósitos são feitos a cada três meses, sem que o usuário precise voltar ao banco.
Outros modelos
Segundo Giovanni, vários países latino-americanos estão adotando sistemas de devolução de impostos por influência do BID, como Argentina, Bolívia e Equador. Um dos aspectos que torna o modelo gaúcho mais adequado, detalha, é o fato de ter base no Cadastro Único:
— Alguns modelos têm características que não se ajustam à nossa realidade.
O subsecretário avalia que essa base é uma das grandes sacadas do modelo, que facilita sua adesão nacional. O ICMS que incide sobre o consumo das famílias cadastradas é estimado com base na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF, do IBGE). Ricardo diz ver a discussão convergindo para a lógica do Devolve ICMS, que optou pela simplicidade em detrimento da precisão:
— O objetivo não é ser o mais preciso e acertar a segunda casa depois da vírgula, mas aliviar as famílias com a devolução de 50% do imposto pago.
Outra é o pagamento com uma parte fixa e outra variável, condicionada ao consumo comprovado.
— Isso estimula esses consumidores a pedir nota fiscal, então ajuda a combater sonegação.
Como funciona
O programa é voltado para famílias cadastradas no Cadastro Único que recebam o benefício do Bolsa Família ou cujo titular familiar tenha dependente matriculado na rede estadual de ensino médio regular. Vale para renda mensal de até três salários mínimos nacionais ou renda per capita menor que meio salário mínimo nacional por mês. A devolução vai até R$ 400 por ano, paga em quatro parcelas anuais de R$ 100. As famílias que pedem CPF nas notas fiscais recebem parcela variável adicional que varia conforme a renda e os pontos acumulados em compras com CPF.