O final da semana passada foi agitado na economia: na quinta-feira (31), o Brasil ficou sabendo que será preciso arrecadar R$ 168 bilhões a mais para equilibrar as contas em 2024, na sexta (1ª/9), houve nova boa surpresa com o avanço de 0,9% no PIB do segundo trimestre. No primeiros seis meses deste ano, o país acumula um inesperado crescimento de 3,7%. Pesquisador associado da Economia Aplicada do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) e especialista em contas públicas, Bráulio Borges vê um lado bom - o PIB maior ajuda a alcançar as metas fiscais - e outro nem tanto - o crescimento não é sustentável.
O que fica de mais uma surpresa boa com o PIB?
Há uma implicação fiscal importante. Como o foco da consolidação fiscal é pela receita, depende do PIB. Se o crescimento surpreende, facilita a vida do governo para cumprir metas fiscais. Depois do resultado do segundo trimestre, o Brasil deve crescer ao redor de 3%, perto do que foi o ano passado, de 2,9%. Caso se confirme, a receita fiscal será maior. Além disso, como a trajetória da dívida é acompanhada na relação com o PIB, um denominador maior melhora o resultado.
Esse crescimento é sustentável?
Essa é a grande questão. O Brasil teve uma sequência de resultados abaixo das expectativas no PIB entre 2017 e 2019. Depois veio o choque da pandemia, e de 2020 para cá tem surpreendido favoravelmente as expectativas. Isso vem do superciclo de commodities. Desde 2020, houve forte alta de preços de matérias-primas que o Brasil exporta, que foi amplificada pela guerra entre Rússia e Ucrânia. Com isso, a renda gerada por setores beneficiados por commodities, como o agro e a indústria extrativa mineral deu salto nos últimos três anos. Essa renda tem efeito de transbordamento para outros segmentos. Com a renda do agro, se compra caminhonete, silo. As áreas de produção mostram dinamismo maior do que grandes capitais. Ainda estamos vendo esse efeito no PIB de 2023. Ainda estamos surfando nesse superciclo. Só que não vai durar muito mais. Alguns preços já estão caindo, o que vai atrapalhar bastante o crescimento do PIB em 2024. Foi bom, ajudou o PIB a surpreender e a sair mais rápido da crise da covid. Mas não pode extrapolar para o futuro. Para 2024, é pouquíssimo provável que vejamos a renda desses setores mantendo os patamares atuais. Sai de cena algo que ajudou e passa a atrapalhar. Outros economistas dizem que há mudança estrutural, resultado de reformas. Esse não é um fator desimportante, mas o que mais importa para entender a sequência de surpresas é o superciclo das commodities, que não vai sobreviver até o ano que vem.
Depois da redução por canetada do ICMS de combustíveis, energia e transporte urbano, agora Estados e municípios vão ganhar de lambuja R$ 44 bilhões de receita a mais 2024.
Em 2024 o governo precisa de muita ajuda para cumprir a ambição do déficit zero, que precisa de R$ 168 bilhões. Vai dar certo?
De fato, a ministra esclareceu que dos R$ 168 bilhões só R$ 124 bilhões iriam para a União, o resto seria para os demais entes da federação. Aliás, esse é um ponto que está fora do radar dos analistas: depois da redução por canetada do ICMS de combustíveis, energia e transporte urbano, agora Estados e municípios vão ganhar de lambuja R$ 44 bilhões de receita a mais 2024. Como o arcabouço só depende de aumento de carga para que a União cumpra as metas, parte dos tributos que serão necessários serão divididos com Estados e municípios e ajuda a ajuda a fechar o buraco da redução de ICMS.
Mas isso supõe que o esforço para arrecadar mais seja muito bem sucedido. Será que será?
O governo anunciou um plano de voo para cumprir a meta de déficit primário zero. Gostaria que estivesse mais detalhado, mas elencou as medidas do lado da receita. Algumas já foram aprovadas, outras são propostas e projetos de lei. Agora, precisamos ver se vai viabilizar.
A decisão foi correta, porque o arcabouço já não é uma regra fiscal muito bem desenhada, como o teto de gastos. Se já no primeiro ano mudasse a regra, seria muito ruim para a credibilidade.
A equipe econômica acertou ao manter a meta de déficit zero mesmo sem saber se conseguirá entregar?
Na prática, com a margem de tolerância, a meta fica em 0,25%. A decisão foi correta, porque o arcabouço já não é uma regra fiscal muito bem desenhada, assim como não era teto de gastos. Se já no primeiro ano mudasse a regra, seria muito ruim para a credibilidade. É verdade que o mercado não acredita no déficit zero, aposta em algo como 0,8% (do PIB, o que significa algo perto de R$ 80 bilhões). Mas tem um bônus. Se não for 0,25%, e ficar entre 0,4% e 0,5%, vai ficar claro que houve esforço e o governo tende a ser premiado, do ponto de vista de mercado, o que significa menos pressão no câmbio e no juro longo. A pressão para mudar meta já vinha mais da ala política, que teme a necessidade de contingenciamento (cortes nas despesas previstas em orçamento). Longe de mim ter posição fiscalista ultraortodoxa, mas o Brasil precisa de um superávit primário de 1% para manter a dívida pública estável. Quanto mais tempo ficar abaixo disso, mais a dívida continua subindo. É incontornável. Para alguns, o certo seria fazer o ajuste só com corte de despesas, acho que o ideal é uma combinação de de cortes e aumentos de receita.
E não existe possibilidade de cortar despesas?
Uma das coisas que chamam atenção no orçamento de 2024 é que, com o fim do teto de gastos, as despesas de saúde e educação deixam de ter um piso corrigido pela inflação e volta a ser vinculadas à receita. Como o governo vai fazer um aumento de carga ao redor de 1,7% do PIB, vão aumentar as despesas com saúde e educação, o que por sua vez significa mais esforço para entregar a meta de resultado primário. Se o governo já tivesse aprovado a mudança de vinculações neste ano, em vez de gastar R$ 327 bilhões em 2024 para cumprir os mínimos, poderia gastar R$ 280 bilhões, aplicando um critério como inflação mais crescimento populacional. Ganharia um espaço de R$ 42 bilhões e não precisaria fazer tanto esforço para atingir o resultado.
E não há previsão de mudança?
Haddad chegou a dizer, no primeiro semestre, que enviaria uma PEC para resolver isso, mas pelo jeito vai esperar até 2024. É um problema sério, porque gera ineficiência, atrapalha o planejamento, o Ministério da Saúde fica com um orçamento fictício, que só saberá se terá mesmo no final do ano que vem. E quando se corre para gastar, quase sempre gasta mal. A vinculação de despesas a receita é a pior possível. Não acho que tem de desvincular, fazer base zero, porque aí só vai ter emenda parlamentar e viaduto em véspera de eleição, mas pode ser mais racional.