Como anunciou na terça-feira (9) o observatório europeu Copernicus, julho de 2023 bateu o recorde de mês mais quente já registrado na Terra. O período ficou 0,33 grau Celsius acima do recorde anterior, também recente, registrado em julho de 2019. Além disso, o mês passado também foi marcado por ondas de calor e incêndios pelo mundo, com temperaturas médias na atmosfera 0,72ºC mais elevadas que as médias registradas para julho entre 1991 e 2020. Segundo o secretário-geral da ONU, António Guterres, a humanidade chegou à era da "ebulição global". Para compreender melhor o impacto dessas mudanças, a coluna entrevistou o meteorologista australiano John Nairn, consultor sênior em calor extremo da Organização Meteorológica Mundial (OMM), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU).
Há eventos climáticos extremos pelo planeta, como ondas de calor no Hemisfério Norte. Devemos nos preparar para eventos extremos cada vez mais frequentes e intensos em razão da mudança climática?
Sim, é uma das consequências desse processo de mudança que estamos vivendo. Há muito tempo, já sabemos que estamos emitindo à atmosfera muito mais CO2 e outros gases de efeito-estufa do que deveríamos. Por isso, é urgente limitar essas emissões o máximo possível, tomando ações contundentes. Mesmo se parássemos de emitir CO2 amanhã, ainda enfrentaríamos por um bom tempo a péssima situação que temos hoje. Como não vamos parar nossas emissões amanhã, precisamos nos preparar para enfrentar eventos climáticos extremos ainda mais intensos e com maior frequência nos próximos anos.
O aumento de eventos extremos são os sinais mais óbvios que podemos ver da mudança climática. Há muitos sinais dessa mudança em pesquisas e estudos, mas muitas pessoas ainda insistem em não querer ouvir os cientistas.
Eventos climáticos extremos são os impactos mais diretos que já sentimos, nesse processo mais longo de mudança do clima?
O aumento de eventos extremos são os sinais mais óbvios que podemos ver da mudança climática. Há muitos sinais dessa mudança em pesquisas e estudos, mas muitas pessoas ainda insistem em não querer ouvir os cientistas. Quando você vê diversas ondas simultâneas de calor extremo em várias partes do Hemisfério Norte, com quebras de temperaturas sucessivas, como agora, não há mais como ignorar esses sinais. Não há esse tipo de ocorrência sem mudança do clima. Ondas de calor são extremamente danosas, impactam o cotidiano das pessoas e ameaçam a saúde das pessoas, principalmente dos mais vulneráveis, como crianças, idosos e pessoas com doenças. Muitas pessoas já morrem por causa do calor todos os anos. O aumento constante desses eventos nos últimos anos faz com seja difícil, até para os mais céticos, ignorar as mudanças que vêm ocorrendo no clima do planeta.
Como você tem acompanhado esses recordes de temperaturas registrados nas últimas semanas?
As temperaturas nesta época do ano, tanto no Hemisfério Norte quanto no Hemisfério Sul, têm sido assustadoras. Um aspecto ao qual precisamos prestar mais atenção é o aumento das temperaturas mínimas, não só das máximas. A elevação das mínimas mostra que temos um período mais longo de alto calor durante o dia, incluindo também a noite, que normalmente é um período mais fresco, muito importante para a recuperação e o descanso. Isso significa maior quantidade de calor no ambiente. O acompanhamento desse indicador dá melhor dimensão em relação ao aumento do calor no ambiente. Isso ajuda a perceber que não devemos nos focar somente nas temperaturas, e sim na quantidade de calor, no aumento da intensidade desse calor, e suas consequências para pessoas e o ambiente.
O El Niño também tem se intensificado por causa das mudanças climáticas?
Historicamente, o El Niño é um fenômeno que, de forma geral, aumenta a temperatura média no globo, enquanto o La Niña diminui. Então já tem esse impacto de liberar mais calor na atmosfera, com os oceanos ficando mais quentes. Contudo, o planeta está em tendência permanente e contínua de aquecimento, o que intensifica efeitos do El Niño e faz aumentar o calor. O aquecimento global impacta também o La Niña, e um exemplo disso é que, nos últimos anos, as temperaturas durante o La Niña foram mais altas do que eram durante o El Niño em décadas passadas. No momento, temos essa tendência de aquecimento contínuo do globo, que deve ser o centro da nossa preocupação, independentemente do período do ano.
Cidades com mais superfícies porosas, por exemplo, aumentam o resfriamento. Outra estratégia é aumentar os lugares com sombras nas cidades, principalmente com o plantio de árvores, e também com painéis solares
Como podemos adaptar as cidades a temperaturas crescentes e ondas de calor extremo?
Há algumas estratégias para tornar nossas cidades mais habitáveis e amenizar esses efeitos. Como sou especialista em ondas de calor, em relação a isso é preciso aumentar o resfriamento do ambiente das cidades, diminuindo a concentração de calor. Um grande problema das cidades são as superfícies que, em muitos casos, absorvem demais o calor. Cidades com mais superfícies porosas, por exemplo, aumentam o resfriamento. Pintar prédios com cores mais claras, que refletem melhor os raios de sol e não conservam tanto calor, também ajuda. Outra estratégia é aumentar os lugares com sombras nas cidades, principalmente com o plantio de árvores, e também com painéis solares. São alguns exemplos de medidas a tomar em relação ao calor, que mitigam um pouco os impactos nas cidades. Mas também precisamos pensar em adaptações em relação a chuva e alagamentos, adaptar as moradias. Só não podemos ignorar essa crise e suas consequências.
E como tentar proteger as plantações desses eventos extremos?
As janelas de produção provavelmente ficarão menores, então teremos de ser mais precisos para aumentar a produtividade, principalmente nas temporadas de maior calor. Deveremos adaptar as plantações e aprender com essas novas experiências, observando na prática o que plantar e quando plantar, para maximizar essa produtividade. Os produtores deverão usar estratégias que diminuam o risco de perda da produção, apostando mais em plantar o que for mais resistente ao calor, e em áreas mais protegidas, para ter melhor retorno. E os produtores devem ser mais incluídos nos debates sobre a mudança climática, para se inteirar dessas transformações. Precisamos abastecê-los com informações sobre o impacto da mudança do clima nas plantações, na importância de ter cultivos resilientes, e os governos devem dar as ferramentas necessárias para manter a produção eficiente.
Se conseguirmos desenvolver padrões de informação e linguagem para todo o globo, poderemos ajudar alertando cedo sobre os fenômenos climáticos que chegarão, com qual intensidade, ajudando as pessoas a se preparar e proteger suas comunidades.
Como é o trabalho desenvolvido pela OMM nesse contexto de crise climática?
Buscamos trabalhar com todos os países, em cooperação internacional, ajudando a desenvolver e aprimorar os serviços meteorológicos nacionais, tornando-os mais capazes de fazer previsões e leituras do clima mais precisas. Produzimos conteúdos e guias sobre o clima e sobre como monitorar, e compartilhamos essas informações entre os países. Avaliamos o que as nações precisam para melhorar os seus serviços de monitoramento do clima, sejam informações, recursos, treinamentos ou tecnologias, e buscamos providenciar o que for possível, principalmente para os países mais necessitados. Também desenvolvemos projetos específicos, como o Early Warnings For All, iniciativa que busca desenvolver um sistema global de alertas matinais do clima em todos os países. Se conseguirmos desenvolver padrões de informação e linguagem para todo o globo, poderemos ajudar todos os países, alertando cedo sobre os fenômenos climáticos que chegarão, com qual intensidade, ajudando as pessoas a se preparar e proteger suas comunidades. É um exemplo de projeto, na prática, que buscamos desenvolver, além de atividades de articulação internacional e de produção e compartilhamento de conteúdo e informações.
Na época do início da sua carreira, acreditaria que estaríamos hoje enfrentando uma crise climática tão séria quanto essa?
Ingressei na universidade na década de 1970. As mudanças climáticas já estavam começando a ser debatidas, mas ainda não havia muita evidência ou produção acadêmica sobre o tema. Nos últimos 20 anos, as evidências cresceram enormemente, e as mudanças do clima se tornaram bastante óbvias para pesquisadores e profissionais da área. No começo da minha carreira, portanto, não poderia imaginar que a mudança climática se agravasse tanto e que chegaria tão rápido quanto hoje, não. Nos últimos anos, quando a crise climática já se apresentava com clareza, definitivamente se tornou um fardo pessoal garantir que tenhamos sistemas para nos manter informados sobre o que está acontecendo, monitorar as tendências das mudanças para que as pessoas entendam que está se acelerando, e que precisamos responder de forma decisiva. O desafio é bem grande. As mudanças estão se acelerando, precisamos apressar as respostas. Sinto que, aos poucos, todos estão entendendo o desafio, pois as evidências estão mais fortes. Vou continuar desenvolvendo sistemas que nos ajudem a monitorar e a entender essas mudanças, demonstrando suas evidências à população. Não estamos mais no tempo de questionar os sinais e evidências, precisamos avançar com soluções. É nisso que estou concentrado. Os cientistas vão continuar fazendo o seu trabalho, mas as evidências já são irrefutáveis de que as mudanças estão acelerando.
* Colaborou Mathias Boni