Além de transformar "frestinha" em "fresta" para o corte de juro em agosto e admitir divergências internas, a ata do Comitê de Política Monetária (Copom) publicada nesta terça-feira (27) embutiu uma confissão: o Banco Central (BC) flexibilizou por conta o regime de meta, que define as regras do combate à inflação.
Não é pouca coisa: economistas muito ortodoxos - que consideram o freio aos preços mais importante do que o bem-estar da população - não toleram qualquer mudança na meta, alegando que vai comprometer a credibilidade do sistema.
Ao detalhar a divergência no Copom - composto neste momento por sete diretores do BC, porque duas vagas ainda estão em processo de substituição -, a ata afirma que o grupo minoritário considera "necessário observar maior reancoragem das expectativas longas e acumular mais evidências de desinflação".
"Reancoragem das expectativas longas" significa que esse grupo quer ver as projeções de inflação apontando para baixo em 2024 e 2025. É bom lembrar que, conforme as regras atuais, a meta deve ser cumprida ao longo no ano, até dezembro deste ano. A visão de cumprimento da meta ao longo dos anos é exatamente a mudança que deve ser aprovada na reunião do Conselho Monetário Nacional (CNM) de quinta-feira (27).
Esse é ponto de alteração considerado certo pelo mercado há mais de um mês: em vez de "entregar" a inflação abaixo do teto da meta no ano-calendário, o limite seria considerado permanente, ou seja, sem uma data específica para alcançar o objetivo definido pelo CMN. O presidente do BC, Roberto Campos Neto, já havia sinalizado a flexibilização em março, quando disse que, para entregar a inflação dentro da meta neste ano, a taxa básica deveria ter sido elevada para 26,5%.
As expectativas dominantes para este ano, conforme o boletim Focus do próprio BC, situam a inflação de 2023 em 5,06%. Está há apenas 0,31 ponto percentual acima do teto da meta e vem caindo há seis semanas seguidas. Imaginemos como estaria se o juro tivesse sido fixado em 26,5%. Então, o BC acertou ao flexibilizar a regra nesse ponto. Mas seria, então, um erro crasso se o CMN flexibilizasse também a meta, a ponto de comprometer a credibilidade do sistema?
É verdade que, com críticas apressadas e personalizadas ao presidente do BC, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva acabou por confirmar desconfianças de boa parte dos economistas e do mercado financeiro sobre sua capacidade de dar prioridade ao combate à inflação, aceitando crescimento econômico menor. Mas o ditado popular "dois erros não fazem um acerto" salta nesse debate.
Como funciona o regime de metas
Para garantir que o Brasil não voltará a ter inflação descontrolada, em julho de 1999 foi adotado o sistema de meta de inflação, já empregado em vários países. Veja como funciona:
- O Conselho Monetário Nacional (CMN) define uma meta de inflação, ou seja, o máximo que pode ser tolerado sem aumento no juro. Essa meta tem um centro e dois intervalos de tolerância de igual tamanho. Para este ano, o centro é 3,25%, com margem de 1,5 ponto percentual para cima e para baixo. Ou seja, o teto é de 4,75% em 2023, com a maioria das projeções estimando inflação de 5,06% no ano.
- O CMN é composto pelos ministros da Fazenda, do Planejamento e pelo presidente do BC (veja detalhes clicando aqui).
- Desde o início da vigência do sistema, o CMN define, sempre no mês de junho, a meta para três anos adiante. Ou seja, se não houvesse alteração, na reunião desta quinta-feira (29) seria definida a meta de 2026. As metas de 2024 e 2025 já foram definidas: 3% ao ano, com margem de tolerância de 1,5 ponto percentual. Isso significa que o máximo tolerado será de 4,5% em cada ano.
- Pela regra em vigor, o CMN define a meta para o BC cumprir até dezembro de cada ano. Em 2021 e 2022, o objetivo não foi atingido. Nesses casos, a única consequência é a obrigação de o presidente da instituição publicar uma carta explicando os motivos do descumprimento e medidas para evitar que isso ocorra.
- Com a mudança de governo, surgiu expectativa de mudança nas regras do regime. Uma das hipóteses era mudar a meta de 3%, considerada apertada demais para o Brasil, que tem economia menos estável e orçamento mais rígido do que outros países. Até Sergio Werlang, ex-diretor do BC que implantou o sistema - um economista ortodoxo, ou seja, que considera essencial o combate à inflação -, avalia que a meta deveria ser mais alta. Para comparar, nos Estados Unidos, a meta é de 2%.
- No mercado financeiro e entre economistas ainda mais ortodoxos, no entanto, a mudança de meta é considerada uma ameaça à credibilidade do sistema. Quando esse debate começou, houve queda na bolsa e alta no dólar. Por isso, hoje a expectativa para a reunião do CMN de quinta-feira (29) se restringe a uma mudança: a confirmação de que não haverá mais cobrança de cumprimento ao final de cada ano. Seria a chamada "meta contínua".
E é essa que o BC já adotou, sem esperar a mudança formal no regime. E, ao que se saiba, ainda não houve perda de credibilidade no sistema no mercado financeiro e entre os economistas mais ortodoxos.