Na quinta-feira (9), em vez da discordância entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o do Banco Central, Roberto Campos Neto, o que perturbou o mercado financeiro foi uma suposta convergência. Houve rumores de que Campos Neto também seria favorável ao aumento da meta de inflação (fixada em 3,5% neste ano, e em 3% em 2024 e 2025). Ao contrário da autonomia do BC, considerada essencial por quase todo setor produtivo e todos os economistas ortodoxos, esse ponto criticado por Lula encontra eco em vozes do mercado - como parece ser o caso do próprio Campos Neto. Como a coluna já relatou, o responsável por implantar o sistema de metas no Brasil como diretor do BC, Sergio Werlang, está entre os que consideram 3% ao ano uma meta "muito apertada" para a realidade nacional. Nesta entrevista à coluna, ele explica os motivos e detalha o que deveria preceder um eventual aumento da meta.
Por que considera a meta muito apertada?
Em 1999, na primeira vez em que se discutiu meta no Brasil - sei porque estava lá (risos) - pensava-se em um número baixo. Não lembro com exatidão, mas o último valor analisado era de 3,25%, e foi aprovado 4%. Eu e Armínio (Fraga, presidente do BC à época) tínhamos essa preocupação e procuramos o professor Aloisio Araujo (doutor em estatística, professor titular da Escola Brasileira de Economia e Finanças (FGV EPGE) para uma consultoria. O objetivo era saber qual seria o melhor nível da meta. Havia percepção de que, na cabeça das pessoas do BC, talvez fosse baixo demais. Em 2015, Araujo publicou um artigo na International Economic Review, como resultado de estudos aprofundados, afirmando que países que têm grande problema fiscal, a ponto de só poder ser resolvido via inflação, tendem a ter mais pressão nos preços do que outros países, mesmo tentando mantê-la sob controle.
Seria o caso do Brasil?
Exatamente. Temos rigidez enorme no orçamento. O salário mínimo é reajustado todo ano, a Constituição não permite reduzir aposentadorias ou salários nem demitir funcionários públicos. Então, esse gasto é muito rígido e hoje já beira 80% das receitas, o que é muito alto para níveis internacionais. E é preciso manter esse número razoavelmente sob controle, porque o país não pode ter déficit muito grande. Países com esse tipo de fragilidade fiscal costumam ter inflação acima de outros países. Por isso, para ser crível, meta tem de ser um pouco acima de países parecidos, mas que não têm essa rigidez.
Realmente acho que o Brasil precisa ter uma meta de inflação mais alta. E isso com Temer, Bolsonaro ou Lula na Presidência.
Que países seriam?
A meta do Brasil tem de ser um pouco acima da de países como Chile e México, que empregam 3%. Mas não muito, entre 4% e 4,5%. Em 31 janeiro de 2017, lembro bem porque fiquei muito apavorado com o que ouvi, porque sabia do perigo de descrédito do sistemas de metas, ouvi o presidente do BC à época (Ilan Goldfajn) dizer que a meta de inflação 3% no longo prazo seria o ideal para o Brasil. Escrevi um artigo dizendo que não poderia ser assim, contei essa história, citei o trabalho do Aloisio. De lá para cá, escrevi 11 artigos sobre o assunto. Em todos, afirmei que a meta não pode ser apertada demais para o Brasil. O país tem um viés que precisa de um pouco de inflação para ajudar na área fiscal. Não adiantou. Então, esse é um ponto importante. Realmente acho que o Brasil precisa ter uma meta de inflação mais alta. E isso com Temer, Bolsonaro ou Lula na Presidência.
O que é fundamental para aumentar a meta e ter certeza de que vai aumentar a credibilidade do BC, não diminuí-la, é equacionar a situação fiscal de forma crível.
O aumento da meta teria algum pré-requisito?
Esse é um ponto importante. Estamos com a área fiscal em completo desarranjo. Quando isso ocorre, se não arrumar, a inflação sobe, como vimos no final do governo Bolsonaro. Aí, o único jeito de equilibrar é cobrando o chamado imposto inflacionário. O que é fundamental para aumentar a meta e ter certeza de que vai aumentar a credibilidade do BC, não diminuí-la, é equacionar a situação fiscal de forma crível. O ministro Haddad tem dito reiteradas vezes que até abril apresenta a regra (marco fiscal). Se for crível, vai começar a cair a taxa de juro dos títulos de longo prazo. Os NTNB 2050 (títulos de dívida do Brasil) hoje está em 6,43%. Se começar a cair na direção de 5% - onde estava, no governo Bolsonaro, mesmo com toda a confusão -, vai se poder entender que as pessoas acreditam que a regra poderá ser cumprida. Nesse caso, pode-se pensar em alterar a meta de forma gradual.
Então, a meta pode subir, mas só depois do marco fiscal?
Exatamente. A meta para inflação tem sido anunciada sempre em junho. Teria tempo de sobra para trocar ideias com pares, acadêmicos, mercado, e verificar se regra fiscal foi ou não crível. Não há necessidade de correr com isso. É importante fazer, mas fazer direito, para ter certeza de que o BC vai ganhar credibilidade, não perder. Aí pode ajustar para um nível mais próximo do que o Brasil realmente consegue atingir sem tanto custo. Para atingir 3%, teria de manter o juro muito tempo em 13,75%. Mas é preciso entender que sem a parte fiscal equacionada, não adianta.
O que tem de entender é que inflação não cai porque a gente quer. Os diretores do BC não mantêm o juro lá em cima porque são maus.
Como interpreta os ataques de Lula ao BC?
Pode estar querendo que o BC reduza a taxa Selic. Mas se fizer isso agora, a inflação vai continuar alta. É isso que ele quer?. O que tem de entender é que inflação não cai porque a gente quer. Os diretores do BC não mantêm o juro lá em cima porque são maus. O governo está gastando uma barbaridade, empurrando a demanda da economia para a frente. A única forma de fazer a inflação cair de forma mais rápida é resolver a questão fiscal. Aí o juro de longo prazo cai, e o BC pode baixar a Selic mais rapidamente.
Ou seja, aumentar meta, tudo bem, mas mexer em autonomia do BC é outra história?
Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A meta de inflação é definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Fizemos assim de propósito - sei porque estava lá (risos). Olhamos como funcionavam os sistemas de metas, e na maioria dos casos, não eram os BCs que determinavam a meta, embora isso ocorresse em alguns. Depois, tem uma característica: pessoas que trabalham em BCs tendem a gostar de inflação mais baixa. Faz parte do job description, assim como quem trabalha na Receita gosta de arrecadar. Provavelmente a inflação que o BC deseja não seja a inflação que a sociedade deseja. Por isso definimos que seria o CMN, com dois ministros representando o Poder Executivo, mais o presidente do BC.
Tem expectativa de que a trégua prevaleça?
Espero que sim, porque toda vez que o presidente ataca o BC, o juro de longo prazo sobe. É possível ver muito bem o efeito prático das palavras. Se acompanhasse na telinha para ver o preço, teria uma ideia melhor de que só piora as condições da política monetária para o futuro. E duvido muito que esse Congresso, ainda mais conservador do que o que aprovou a autonomia, aceite discutir a retirada. Os presidentes das duas casas já se manifestaram nesse sentido. Além de ser muito difícil, teria um efeito bastante ruim, de mais inflação. Não vejo lógica em continuar com essa batida.