Com cerca de quatro décadas de experiência como alto executivo de empresas de varejo - Carrefour, Extra, Pão de Açúcar, Hugo Bethlem é cofundador e presidente do conselho do Instituto Capitalismo Consciente Brasil (ICCB), cujo propósito é ajudar a transformar a forma de se fazer investimentos e negócios no Brasil. Em 2 de março, a entidade que completa 10 anos em 2023 começa por Porto Alegre uma série de encontros regionais que vão desaguar no III Fórum Brasileiro do Capitalismo Consciente. E com um tema escolhido a dedo para o Rio Grande do Sul: desigualdade no acesso à educação de qualidade. Nas 11 edições, que vão culminar no encontro nacional, o instituto quis falar sobre "dez igualdades", para se contrapor às desigualdades que combate.
O tema da educação, uma dívida do Rio Grande do Sul com a sociedade, foi uma escolha?
Definimos as 'dez igualdades' e, no caso do Rio Grande do Sul, como sabemos do ativismo da filial, escolhemos começar pela educação. Na nossa ordem, que não representa prioridade, seria a quinta. Mas escolhemos a educação para começar o evento porque entendemos que a desigualdade de acesso à educação de qualidade porque pode tirar as pessoas da pobreza e elevar sua dignidade. É o segundo ponto depois de resolver o problema da fome. Com fome, ninguém trabalha, ninguém estuda. É um marco gravíssimo, e a gente andou alguns anos para trás. Resolvido isso, temos de partir para a qualidade da educação, que não passa só pelas escolas. Passa por aqueles que, ao longo dos anos que deveriam estar estudando, tiveram deficiências, seja pela qualidade do ensino, seja por falta de oportunidade efetiva. Essas pessoas não podem ser penalizadas por isso quando chegam às empresas. E não dizer 'não é responsabilidade minha'. Se é uma empresa consciente, que quer praticar pilares ESG (governança corporativa, social e ambiental), tem de cuidar do contrato social. Esse 'social' não vem de 'sócio', vem de 'sociedade'. Então, e empresa tem responsabilidade, sim, de dar oportunidade para as pessoas. Quem enfrentou dificuldades na vida tem de ter oportunidade de ser equiparada às demais. Aí sim é possível ter capitalismo de verdade, com disputa, meritocracia. Isso não significa levar para baixo, mas puxar para cima.
Hoje a adesão ao capitalismo consciente é maior, graças à difusão do ESG?
O ESG é de 2005. Nasce de uma provocação de Kofi Annan (na época secretário-geral da ONU). Mas foi entre 2020 e 2021, durante a pandemia, que Larry Fink, do BlackRock (apontado como maior fundo de investimentos do mundo), disse que para ter propósito e valores era preciso praticar ESG. Com alguém tão influente passando essa mensagem, as empresas começam a dar atenção ao tema e tratar todos os stakeholders (todos os públicos que se relacionam com a empresa) de forma equânime. Para isso ser verdade, é preciso ter um propósito, que o lucro seja uma consequência. A licença que as empresas têm para operar neste planeta só vale se seguir os princípios e os pilares do ESG. E só vai ser verdade se essas práticas forem transparentes para todos. Tem muita empresa que só olha para seu umbigo para maximizar seu lucro, à custa da dor, da miséria e do sofrimento das outras partes. Temos só 220 empresas associadas ao IBBC.
É uma empresa igual a milhares, infelizmente, no mundo. O mau exemplo dado é a cultura da obsessão sobre resultado. Mas muita gente que hoje atira pedras é igualmente culpada.
Como o caso Americanas impacta esse cenário?
Quem diz que sabe sobre Americanas não sabe. É uma empresa igual a milhares, infelizmente, no mundo. O mau exemplo dado é a cultura da obsessão sobre resultado. Mas muita gente que hoje atira pedras é igualmente culpada. Enquanto a situação fluía positivamente, ninguém falava nada. Agora, o mesmo banco que cobrava resultado está atirando pedra, mas foi conivente com o que aconteceu.
Mas como um dos sócios tem uma fundação social, esse tipo de atividade pode ser impactado?
Isso ocorre porque há empresas que querem maximizar o lucro a qualquer custo e lideranças compradas por interesses de curto prazo. Respondem ao vento do mercado financeiro. Muitas vezes, um CEO sai porque obteve resultados abaixo do esperado. Quem dita o que é esperado? Não estamos em jogo de regras finitas. Tem muita irresponsabilidade do mercado financeiro, que deixou de ser investidor para ser especulador. O prazo não é mais de 20 anos, mas de nove meses ou até um trimestre. É esse modelo que parecia ser um sucesso, que maximiza lucro para distribuir a acionistas e pagar bônus gigantescos. Isso amplia a desigualdade salarial. Muitas empresas acreditam cumprir seu papel social ao ter todos os funcionários com registro na CLT e pagos em dia. Isso não basta. Quantas vezes seu CEO ganha a mais do que a base da pirâmide? Duzentas, quinhentas? Se essa base consegue ter uma vida digna para si e seus familiares, se não tem uma vida miserável mesmo registrada na CLT, tudo bem. Se não, olhe para esse povo antes de olhar para qualquer outra coisa.
Da noite para o dia, com objetivo de garantir a maior Páscoa do Brasil, essa empresa pagou à vista por 13 milhões de ovos. E deve R$ 100 milhões para milhares de pequenas empresas que podem quebrar se não receberem.
O anúncio da Americanas de que vai pagar antes os pequenos credores atenua o dano à imagem da companhia?
Da noite para o dia, com objetivo de garantir a maior Páscoa do Brasil, essa empresa pagou à vista por 13 milhões de ovos. E deve R$ 100 milhões para milhares de pequenas empresas que podem quebrar se não receberem. Poderia ter diminuído o número de ovos e continuar oferecendo o sustento de pequenos negócios. ESG não é sobre criar fundações ou fazer benesses com pouco dinheiro. Isso é comprar travesseiro para consciência. ESG é outra coisa. Hoje, a prática da boa governança não recomenda criar fundações ou institutos, mas ações diretas da empresa.
Em países desenvolvidos, certificações e selos relacionados ao ESG já definem compras. Isso será um privilégio dos países ricos ou pode chegar a nações de menor renda, como o Brasil?
Pode e vai chegar. As novas gerações já estão fazendo alguma seleção. Mas aí também há uma posição ambígua, porque esse público compra de sites chineses e de outros países que não pagam impostos no Brasil. E depois reclama porque o produto é de má qualidade e descartável. É claro que questões que mexem no bolso são graves. Quem tem dificuldade para sobreviver não vai pagar mais 30% porque o produto vem da economia circular. Mas será que precisaria custar 30% a mais? Por que hoje existem os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável)? Porque escolhas baseadas em ganância e egocentrismo nos levaram a isso. Para que a Americanas precisa comprar 13 milhões de ovos? Para não deixar para mais ninguém. Para mudar isso, precisamos estar dispostos a mudar nosso ganha-perde para um ganha-ganha-ganha.