Considerada uma das maiores conhecedoras do Bolsa Família no Brasil, a socióloga Letícia Bartholo é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e trabalha com o assunto desde 2002. Com a extinção do programa para criação do Auxílio Brasil, sem muitos detalhes sobre o novo formato, tem ajudado a avaliar o que se ganha e o que se perde com a mudança. Uma de suas principais críticas é sobre a criação de "incentivos financeiros" que condicionam reforço no pagamento a ter ao menos uma pessoa com emprego formal, acumulando recursos em famílias com alguma proteção. Em poucas palavras, vê "muita confusão para pouco resultado" e aponta uma "espécie de leilão com o mais pobres", por ter se concentrado no valor final de R$ 400 – ainda uma promessa, já que a PEC dos Precatórios ainda não foi aprovada no Senado –, sem planejar efeito prático de redução da miséria.
Como vê a criação do Auxílio Brasil?
O primeiro aspecto é uma questão: qual a necessidade de mexer em time que estava ganhando? O Bolsa Família é o programa mais bem avaliado no Brasil. Seria racional trabalhar apenas para aprimorá-lo. Havia necessidade de torná-lo mais simples, unificando critérios e periodicidade do reajuste das linhas de entrada e dos demais benefícios, além de incorporar a fila existente no programa. No entanto, a proposta do governo não atua nessas lacunas e traz um desenho de transferência de renda absurdamente bagunçado. Inclui incentivos financeiros pouco justificáveis do ponto de vista técnico, que vão competir com o que é essencial: reduzir a pobreza.
Por que incentivos financeiros, que soam como algo positivo, não se justificam?
Por exemplo, o governo quer passar R$ 200 a agricultores familiares que recebam o valor básico, condicionando que produzam e doem parte da produção. Quem acompanha esse universo sabe que o agricultor pobre não consegue se vincular ao mercado por vários motivos, como falta de chuva, de assistência técnica. E nada disso é tratado. É como se, com R$ 200 a mais, o produtor resolvesse esses problemas sem outros tipos de apoio. Nas cidades, paga R$ 200 a mais do que a transferência básica se a família tiver alguém vinculado ao mercado formal de trabalho. Ora, se tiver alguém empregado, essa família já está mais protegida. É pouco, mas tem abono salarial ou salário família. Dependendo do tempo, tem acesso a seguro desemprego. O governo acha que pessoas que recebem transferência de renda não querem trabalhar. Do ponto de vista técnico, isso não é correto. Em pesquisas e levantamentos ao longo dos anos, esse efeito de evitar se formalizar não existe ou não é expressivo. O orçamento aumentou pouco, de R$ 34,7 bilhões para R$ 38,2 bilhões, não consegue nem incorporar os 2 milhões que estão na fila. Sem fazer o básico, cria novos incentivos como se tivesse dinheiro sobrando. É de uma irracionalidade ímpar na alocação de recursos.
Ao conceder mais benefício a famílias com alguém no mercado formal, impede o atendimento de pessoas na fila, por comprometer o orçamento com quem tem fonte de renda.
Por quê?
Conforme o decreto, todos os novos incentivos concorrem com a renda básica. Isso significa que, na medida em que concede benefícios em dobro para famílias que têm uma pessoa no mercado formal, reduz a dotação orçamentária para os essenciais e impede o atendimento de pessoas que entrem na fila, porque a parcela ficou comprometida em pagar mais a quem já tem uma fonte de renda.
Os R$ 50 bilhões que viriam da PEC dos Precatórios não atendem?
Não estou considerando, porque a PEC não foi aprovada. O que temos, neste momento, são cerca de R$ 4 bilhões a mais.
O que temos hoje são filas que só se justificam pelo desdém do governo com a qualidade da gestão pública e por problema de comunicação.
Nos últimos dias, apareceram filas de pessoas querendo garantir acesso ao programa. Faltou comunicação?
Em 2005, o Brasil assistiu a filas de pobres para se cadastrar, porque era preciso fazer a unificação dos cadastros para expandir de 5 milhões para 11 milhões de beneficiados. Os municípios ainda não estavam organizados. Houve fila porque era uma clara necessidade em termos de gestão da política e de atendimento de mais pessoas, que iam com a expectativa de que seriam atendidos, e foram. O que temos hoje são filas que só se justificam pelo desdém do governo com a qualidade da gestão pública e por problema de comunicação. Não há mais necessidade de unificar cadastros. Quem já está no Bolsa Família deveria estar tranquilo, sabendo que vai receber. Se o governo se comunicasse bem, e fosse capaz de dizer a verdade, já teria anunciado que não vai atender qualquer família que já não esteja na fila. Mudou um programa de sucesso aos 45 minutos do segundo tempo, em um momento em que a assistência social está fragilizada em capacidade de atendimento a essas pessoas. Por que fazer esse movimento se não vai conseguir sequer incorporar pessoas que dele precisam? Não há mudança que melhore a proteção social aos mais pobres.
Você tem resposta para esse "por quê"?
Por um tempo, achei que tivesse. Agora, não tenho. Gera muito estranhamento. Nossas respostas sempre buscam o caminho do racional. Nesse caso, é difícil de achar. Estamos saindo de uma gravíssima pandemia. Nesse período, o sistema de cadastro já ficou muito prejudicado, porque a estrutura teve de atender a outras demandas. Hoje já milhões de cadastros que precisam ser atualizados. É possível que a frequência escolar já não seja tão ampla. É para isso que o governo deveria voltar os olhos, para os problemas que gritam à frente. Era necessário corrigir o Bolsa Família, ampliar o público e corrigir as linhas de pobreza. Ainda que tenha havido ampliação do benefício, sequer recompõe o valor desde o último reajuste. É muita confusão para pouco resultado. Teve aumento linear de 17,84%. Falaram em 20%, mas no decreto é esse o percentual. E precisava de 20% para recompor a inflação pelo INPC. E as linhas de entrada, de extrema pobreza e pobreza, foram reajustadas em 12%. Isso é fácil de explicar: se aumenta mais, gera mais fila, publiciza a fila. Aí o raciocínio é 'vou trabalhar com linha de pobreza mais baixa, para não ter tanta pressão'. É quase fechar os olhos do poder público para a pobreza real.
Evitaria o uso eleitoral dos mais pobres e permitira ao próximo governo se planejar em relação a ao atendimento dessa população. Não há nexo de programa social com precatórios.
Os R$ 50 bilhões prometidos não atenuam?
Não há memória de cálculo (detalhamento de como os recursos são gastos) para avaliar, então é complicado falar sobre isso. Não se sabe como esses R$ 50 bilhões serão gastos, se será para chegar a R$ 400 para os 17 milhões de beneficiários ou se haverá despesas com outros incentivos além dos já criados. Além disso, só vale até dezembro de 2022. Se é para criar espaço no teto de R$ 50 bilhões, por que não excluir temporariamente esse gasto do teto, o que permitiria pagar até 2023? Evitaria o uso eleitoral dos mais pobres e permitira ao próximo governo se planejar em relação a ao atendimento dessa população. Não há nexo de programa social com precatórios. O governo não usou racionalidade, transparência e justiça. A PEC 23 libera R$ 91 bilhões, mas o Auxílio Brasil só vai receber R$ 50 bilhões. A gente sabe que o restante vai para despesas obrigatórias que foram subestimadas no orçamento de 2022, e parte para as chamadas emendas do orçamento secreto, que agora foi vetado pelo STF. Há muita falta de transparência nessas medidas.
Você quer dizer que o governo fez um programa eleitoreiro?
Na medida que o governo estipula um benefício temporário até o fim do seu mandato, fica difícil não chegar a essa conclusão.
Um programa feito para dar segurança de renda mínima se transformou em programa de insegurança.
Depois que as filas se formaram, o governo avisou que as pessoas não precisavam se recadastrar. Foi uma comunicação tardia?
Foi tarde, mas sempre ajuda. O governo deveria estar trabalhando expressamente na comunicação com essa população, para tranquilizar pessoas já muito vulneráveis. Com falta de informações, é natural que sintam medo de perder. Foi uma espécie de leilão com os mais pobres. Não foi feito um estudo profundo sobre qual o impacto que deseja sobre a pobreza e de quanto se precisa para isso. O governo não mostrou, por exemplo, se R$ 400 para 17 milhões é melhor do que R$ 300 para 20 milhões. Ficou em debate consigo mesmo, em um dia era R$ 300, no outro R$ 400, como se os pobres estivessem ali postos em leilão. Um programa feito para ser segurança mínima de renda se transformou em programa de insegurança. O Auxílio Brasil é cheio de problemas. Um deles é o auxílio creche, que exige, primeiro, que a família amplie a renda, para depois conseguir uma vaga. Na vida real, pais, mas sobretudo mães, dependem do serviço de creche para conseguir aumentar a renda. É uma inversão da lógica, que foi mostrada na série Maid, quando a personagem indaga 'preciso de um emprego para provar que preciso de uma creche para poder buscar um emprego?'.
Como eram os benefícios
O Bolsa Família atendia famílias em extrema pobreza, com renda familiar por pessoa de até R$ 89 mensais, na e pobreza, entre R$ 89,01 e R$ 178 mensais por pessoa. As da primeira faixa podem receber, além do benefício básico, de R$ 89, mais R$ 41 mensais se houver uma gestante, mãe que amamente ou criança e adolescente até 15 anos, além de R4 48 mensais para jovens de 16 e 17 anos. Também previa a chamada "superação da extrema pobreza", que complementa o valor dos demais benefícios até garantir que cada pessoa estivesse acima da linha de extrema pobreza. O valor médio mensal era de cerca de R$ 190 por família.