Quem deu o pontapé inicial no debate sobre o impacto do formato de cobrança de ICMS sobre os combustíveis foi o gaúcho Décio Oddone, ex-diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). À coluna, esse disse que não é autor da ideia, mas foi o "primeiro a encampar o levantamento da lebre":
– A ideia não foi minha, mas era uma coisa óbvia e não vinha à toa. Eu trouxe para a discussão.
Nesta segunda-feira (1ª) começa a vigorar um congelamento de 90 dias no chamado "preço de pauta", resultado de pesquisa feita pelas Secretarias da Fazenda nos postos. Com base no preço médio desse levantamento é que incide a alíquota de cada Estado. Oddone avalia que o congelamento temporário é "melhor do que deixar como está", mas não será suficiente. Segue defendendo um valor fixo definido a cada ano, e adverte:
– Não tem solução milagrosa.
Oddone escreveu um artigo para um livro ainda a ser publicado, com título provisório de "Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil" defendendo a atual política de preços da Petrobras. No texto, afirma que "ideias intervencionistas precisam ser superadas". Lembra que já houve controle de preços, intervenções, subsídios cruzados e diretos, mas nada funcionou, porque "os custos fiscais foram altos, a oferta foi inibida e a Petrobras acumulou perdas".
O congelamento de ICMS dos combustíveis por 90 dias é suficiente para um alívio nos preços?
É melhor do que deixar flutuando como está. É necessário, mas não suficiente". A sugestão era congelar por um ano. Hoje, quando o Estado faz seu orçamento anual, prevê arrecadação de ICMS levando em conta a estimativa de preço do petróleo e o câmbio. Se os dois subirem, recolhe mais. Se caírem, menos. Se congelar por um valor pressuposto no orçamento por um ano, ajuda a reduzir a flutuação. Pode-se definir uma espécie de gatilho caso a variação seja muito forte. Isso tira o risco de o orçamento estadual ser impactado por petróleo ou câmbio. Em 2014, quando o preço do petróleo colapsou, o Rio de Janeiro foi à lona só com a perda de royalties. Se a Petrobras não tivesse mantido preço (antes, havia retido repasses), teria sido pior. Não se deve olhar só a expectativa de aumento na arrecadação. Há sempre o risco de queda. Um dia, o preço do petróleo cai. Ainda mais agora, que houve uma grande mudança e temos ciclos mais curtos.
Os ciclos de oferta e demanda ficaram muito mais curtos, com maior volatilidade de preço, não tem mais mais um patamar que dure 14 anos. Daí a preocupação em estabilizar a cobrança de ICMS por ao menos um ano.
Que mudança é essa?
O setor de petróleo tinha ciclos de preço longos. A partir de 2010, surgiu um fato novo, a produção no shale (petróleo e gás armazenados em rochas) nos Estados Unidos. Até então, os ajustes de oferta e demanda levavam anos, a reação da Opep era lenta. A produção de petróleo no mar demora, no Brasil leva-se de seis a oito anos entre a assinatura de outorga e o início da produção. Nos campos de shale, em terra, são três ou quatro meses para começar a produzir. Com covid e transição energética, os investimentos em petróleo caíram, ficaram mais difíceis de financiar, e o resultado é uma oferta comprimida. Os ciclos de oferta e demanda ficaram muito mais curtos, com maior volatilidade de preço, não tem mais um patamar que dure anos. Daí a preocupação em estabilizar a cobrança de ICMS por ao menos um ano.
Por que a Opep está deixando o petróleo tanto tempo no topo?
A Opep tinha um poder de mercado que está tentando exercer. Era capaz de determinar preços, mas o shale mudou isso também. Os EUA passaram a ser o maior produtor mundial e passaram a determinar cotações. Logo antes da pandemia, a Arábia Saudita e a Rússia fizeram uma guerra de preços para afetar a produção americana, mas aí veio a pandemia e, com dois efeitos muito fortes simultâneos, o preço despencou.
Muitos produtores de shale quebraram?
Muita gente quebrou, ficou para trás, mas com preços em US$ 80, US$ 90, está voltando. Não com o volume que tinha, mas volta. A rapidez é muito grande. E é assim: quando o preço está lá embaixo, todo mundo jura que não vai subir, e quanto está lá em cima, parece que não vai cair. Não sei quando, mas um dia, vira.
Nada resolve, não tem solução milagrosa. O mercado se impõe.
Mas se o ICMS não resolve...
(interrompe) Nada resolve, não tem solução milagrosa. O mercado se impõe. A soja subiu muito, o Brasil fica mais rico. O óleo para consumo doméstico aumentou muito (cerca de 60%), mas ninguém diz que é ilegítimo. Com a carne, é a mesma coisa.
Um fundo de estabilização não seria uma saída?
Conceitualmente, é a solução. Mas vários países implementaram e desconheço algum que tenha mantido de forma bem-sucedida. O Brasil também teve tentativas, começando pela Cide (tributo sobre os combustíveis), mas nunca operou adequadamente. E o fundo social do pré-sal, aquele em que tudo cabia, educação, saúde, também tinha como prerrogativa mitigar variações de preço.
Que fim levou o fundo do pré-sal?
Está aí, mas são as maravilhas da intenção. Cadê a vontade de aportar dinheiro e deixar paradinho, quieto. A tentação política de administrar fundos é grande. Outro problema é o seguinte: se o petróleo despencar e, por exemplo, cair de US$ 3 para US$ 1 nos EUA, no Brasil vai ter de ficar em US$ 3 porque tem de alimentar o fundo. Imagina a pressão para baixar, segurar o preço alto quando lá fora está mais barato.
Se pegasse todo esse dinheiro, poderia separar parte para mitigar as altas, mas aí volta aquele problema de incentivar o uso de combustíveis fósseis e prejudicar etanol e biodiesel.
E não seria possível alimentar com royalties, participações governamentais, já que é uma questão tão sensível?
Se conseguir aprovar todas as legislações necessárias, em tese, sim. Cada dólar de aumento de preço gera por ano cerca de US$ 260 milhões em arrecadação em todos os impostos, mais de R$ 1 bilhão. Se pegasse todo esse dinheiro, poderia separar parte para mitigar as altas, mas aí volta aquele problema de incentivar o uso de combustíveis fósseis e prejudicar etanol e biodiesel.
E não tem como incluir etanol e biodiesel no fundo?
Aí não tem dinheiro que chegue. Geraria um custo adicional de cerca de R$ 3 bilhões. E ainda agora se discute o vale-gás. O problema é a prioridade. O mérito do do Bolsa Família foi juntar todos os programas em um só, com poder de fogo muito maior. Em vez de subsídio para combustível, não seria melhor fortalecer o programa de renda mínima. A história mostra que isso é mais acertado.
É saudável para o Brasil que a que a Petrobras seja lucrativa e pague dividendos ao seu acionista majoritário, que é a União. Assim, pode utilizar esses recursos em políticas públicas.
E como entender uma estatal que dá um lucro enorme, faz distribuição de dividendos multibilionária, mas vê ações desabando no mercado?
É saudável para o Brasil que a Petrobras seja lucrativa e pague dividendos ao seu acionista majoritário, que é a União. Assim, pode utilizar esses recursos em políticas públicas. É uma questão de prioridade e uma decisão de políticas públicas.
Há possibilidade de mudança na política de preços da Petrobras?
Não existe essa hipótese. O Brasil não produz todo o combustível de que precisa, então somos obrigados a trazer de fora. Então, é preciso ter alguém para comprar, pagar os custos de internação, cobrir perdas e vender por um preço que justifique a importação. Ou ninguém vai fazer isso, e vai faltar produto.
Temos de aprender com as lições do passado. Em 1956, a primeira lei que estabeleceu como se fixam preços dos combustíveis já reconhecia que a paridade de importação era a única maneira possível. Sessenta anos depois, continuamos discutindo a mesma coisa.
A Petrobras tenta vender refinarias no meio dessa batalha por uma decisão sua na direção da ANP?
Porque a Petrobras tinha tinha o monopólio de fato, embora a Lei do Petróleo tenha estabelecido que prevaleceria o regime de competição. Depois da greve dos caminhoneiros, a ANP consultou o Cade sobre a situação do parque de refino, e o Cade chegou à conclusão de que seria saudável para o ambiente competitivo no Brasil que houvesse outros atores atuando no refino. O processo todo foi concluído com um acordo assinado pela Petrobras com o Cade para a venda de refinarias. Temos de aprender com as lições do passado. Em 1956, a primeira lei que estabeleceu como se fixam preços dos combustíveis já reconhecia que a paridade de importação era a única maneira possível. Sessenta anos depois, continuamos discutindo a mesma coisa.