O grupo gaúcho Évora acaba de passar pela segunda sucessão protagonizada por executivos. O conglomerado da família Ling decidiu profissionalizar a gestão em meados dos anos 2000. William e Wilson Ling, filhos do fundador Sheun Ming Ling, passaram o comando do dia a dia para Geraldo Elbling Enck. Agora, Enck vai para o conselho e Silverio Baranzano assume a presidência. Tem a missão de concluir um investimento de US$ 450 milhões (R$ 2,5 bilhões pelo câmbio atual) iniciado no ano passado, mas só revelado em toda sua magnitude ao longo desta entrevista, que deve ser completado em 2021. É um valor inusual em investimentos de empresas gaúchas, maior do que cada uma das etapas da General Motors (GM) no Estado. O mais recente dessa dimensão, no Rio Grande do Sul, foi o de R$ 5 bilhões da chilena CMPC. A mudança leva ao comando um profissional que entrou em 1985, como estagiário, na Fitesa, uma das empresas do conglomerado. Representa uma espécie de símbolo da política de valorização dos talentos, que faz o grupo ter 80% dos líderes formados internamente. A Fitesa é a principal empresa do grupo, com 23 unidades em 13 países - é a multinacional brasileira mais internacionalizada pelo quarto ano consecutivo, conforme ranking da Fundação Dom Cabral. Produz material usado em máscaras cirúrgicas e N95, até 2020 um produto usado apenas em ambientes muito específicos. No ano que começou com previsão catastrófica, teve o melhor resultado de vendas de seus 32 anos de história, o que ajudou a sustentar aquisições e o megainvestimento em apenas dois anos. Em 2020, a receita total do grupo chegou a R$ 9,5 bilhões, 40,2% acima do ano anterior. O Évora atua ainda na fabricação de latas de alumínio, a Crown Embalagens, associada à americana Crown Holdings, e de tampas plásticas na América Tampas. Fazia muito tempo que uma empresa gaúcha não investia valor semelhante em tão pouco tempo. Os recursos não ficam todos no Rio Grande do Sul, mas representam a força e a resiliência do setor privado em um momento tão desafiador.
Foi o melhor ano da história do grupo?
Foi muito bom. No início de 2020, nos preparamos para uma catástrofe. Quando começou a degringolar, fizemos movimentos fortes para tentar sustentar os negócios. Em números, foi o melhor, com certeza. Mas sob o ponto de vista do ambiente, certamente não foi. Além de conviver com tantas perdas, tivemos o falecimento de um colaborador no México, o que afeta o ânimo de todos.
A chegada de um estagiário à presidência é emblemática para o grupo. E para o profissional?
Sim, comecei como estagiário em 1985, ainda nem saído da faculdade. São 36 anos no grupo, que tem essa característica, de formar profissionais para assumir responsabilidades ao longo da trajetória. É a volta da confiança que a gente deposita na organização e na sua cultura. A gente se prepara, trabalha, se dedica para quebrar barreiras. Sou do tipo de pessoa que não traça objetivos para cinco, 10, 15 anos. Nunca tive essa ambição. Sempre me preparo para enfrentar o próximo desafio. Assim, acabei chegando à presidência do grupo.
Como foi esse processo em um ano em que a empresa foi super demandada?
Foi desafiador de tudo que é lado. A Fitesa é uma fábrica de insumos usados em equipamentos de proteção individual, os EPIs. A gente sabia que uma onda estava vindo, porque temos uma operação na China, onde tudo aconteceu antes. Lá passou só um dia fechada, até que fosse reconhecida como fabricante de produtos essenciais.
Todo esse mercado explodiu com a pandemia. Nossa unidade de Gravataí é voltada para esse segmento de EPIs.
Que insumo é esse que a Fitesa produz?
É o não tecido. O nome vem de uma negação do tecido, no sentido de que não usa fios e tear no processo de fabricação. É uma estrutura para confecção de produtos semelhantes aos feitos com tecido. Cumpre a mesma função, mas como tem processo de produção mais simples, é muito mais barato. Atuamos em dois setores, o de higiene, em que temos, no Brasil, cerca de 35% do mercado de fraldas de bebês e de adultos e absorventes femininos, e o de saúde, em que temos cerca de 60% do mercado formado por máscaras cirúrgicas, as N95, roupa de proteção. Todo esse mercado explodiu com a pandemia. Nossa unidade de Gravataí é voltada para esse segmento de EPIs.
O que fizeram para dar conta da demanda?
Normalmente, o mercado no Brasil era abastecido por de 5% a 10% de produtos nacionais, e 90% a 95% vinham da China. Com a pandemia, as máscaras ficaram presas na China, e as que saíam ou eram sequestradas no caminho para o Brasil em qualquer lugar que parassem. Nossos clientes precisavam, começaram a ligar, os pedidos explodiram de uma hora para outra. Havia uma pressão absurda. Como éramos o principal fornecedor, precisávamos achar uma solução para poder entregar o produto à sociedade. Tivemos muitos parceiros, Renner, Braskem, todos os fabricantes de roupa passaram a fazer aventais e máscaras.
Saímos atrás de fornecedores locais, porque faltava tudo. Foi um trabalho espetacular do pessoal, para encontrar fornecedores de subsistemas.
E para abastecer?
Nossa equipe de engenharia de produção fez adaptações em uma máquina que passava cerca de dois terços do tempo ociosa e construiu um equipamento para fazer material para máscaras N95, porque faltava fábrica no Rio Grande do Sul. Tentamos encomendar máquinas, mas ninguém tinha para entregar. A solução foi construir equipamentos, o que fizemos em 60 dias. E também encomendamos duas máquinas importadas, para entrega em nove meses. Além disso, construímos duas máquinas para confecção de máscaras N95 para colocar no cliente. Cedemos em comodato, depois vendemos. Era o que precisava ser feito. Isso levou mais tempo, uns oito ou nove meses. Saímos atrás de fornecedores locais, porque faltava tudo. Foi um trabalho espetacular do pessoal, para encontrar fornecedores de subsistemas.
Qual foi o aumento de capacidade ao final de desse processo?
Tínhamos um equipamento ocioso, que trabalhava usando entre 30% e 40% de sua capacidade. Hoje temos três, exclusivamente para produzir o substrato das máscaras N95. Em capacidade, aumentamos 200%. Em vendas, 500%, porque havia ociosidade.
Foi parte do investimento de US$ 150 milhões que fizemos em 2020 de um total de US$ 250 milhões que decidimos aportar na Fitesa. Houve uma total quebra de paradigmas porque, pela primeira vez na história, compramos empresas sem visitar as fábricas.
Quanto é isso em volume?
Em vendas, fomos de 250 para 1,4 mil toneladas. Medimos em toneladas, embora seja um produto leve. O material para máscara cirúrgica pesa cerca de 20 gramas por metro quadrado, e o para as N95, cerca de 40 gramas por m2. É mais pesada porque precisa ter os elementos filtrantes, que não resiste muito à tração, então precisa ter outras duas camadas de revestimento, uma das quais dá estrutura, por isso tem três camadas.
Isso ocorreu só no Brasil?
Acabamos exportando essa tecnologia de desenvolver máquinas em casa para outros países. A Fitesa tem 23 fábricas em 13 países, e em todas havia equipamentos que poderiam ser transformados para produzir materiais para a área de saúde, como aventais e máscaras. Transformamos tudo o que pudemos transformar. Acabamos comprando quatro máquinas, para unidades na Alemanha, Índia e Estados Unidos. Expandimos a capacidade. Esse processo se estendeu até o início de março. Foi parte do investimento de US$ 150 milhões que fizemos em 2020 de um total de US$ 250 milhões que decidimos aportar na Fitesa. Houve uma total quebra de paradigmas porque, pela primeira vez na história, compramos empresas sem visitar as fábricas. Sempre fomos conhecer antes. No ano passado, tivemos de abrir mão. A equipe local fez as visitas e nos reunimos por videoconferências para conhecer as pessoas. Não é a mesma coisa, mas teve de servir. Deu certo. Já começou a render frutos em 2020 e vai render mais em 2021. Outros US$ 200 milhões são investimentos da Crown, em uma nova fábrica de latas para cerveja, em Uberaba (MG) e na ampliação da unidade de Goiás. Não temos fábricas de latas no Rio Grande do Sul. Vamos investir um total de US$ 450 milhões entre 2020 e 2021.
Onde ficam essas empresas?
Na Índia, na Hungria e nos Estados Unidos, além de uma unidade em Diadema (SP). Fazem parte da Tredegar, que compramos em agosto passado. Também compramos a Freudenberg, que tem uma fábrica em de filmes perfurados, usados em absorventes, que usa uma tecnologia diferente da nossa, veio no pacote. E ainda fizemos uma terceira aquisição, na Carolina do Norte (Fiber Dinamics), mais semelhante às nossas. Essas produzem lenços de limpeza usados em sanitização hospitalar, que são muito usados nos Estados Unidos, que também tiveram explosão de consumo no ano passado.
Quando a indústria começou a retomar, deparou com uma cadeia de suprimentos bastante quebrada. Além disso, os custos do frete marítimo chegaram a aumentar 15 vezes.
Enfrentaram dificuldades em obter matéria-prima?
Enfrentamos e ainda estamos enfrentando. No começo da pandemia, não, mas quando a indústria começou a retomar, deparou com uma cadeia de suprimentos bastante quebrada. Além disso, os custos do frete marítimo chegaram a aumentar 15 vezes. E temos de movimentar material da Ásia e da Europa e enviar da América para a Europa e para o Sudeste Asiático. Houve disparada no preço do petróleo, nossa principal matéria-prima. O barril subiu de US$ 30 para quase US$ 70, agora recuou um pouco, para mais perto de US$ 60. E ainda houve uma intensa e pouco comum onda de frio no Texas, onde se concentra 80% da indústria petroquímica, o que provocou paradas em fábricas, que agora demoram para retomar. Afetou todo o mundo, ainda estamos saindo desse buraco de produção.
Foi um nó logístico em cima de um nó logístico?
Isso mesmo. As matérias-primas rarearam ainda mais e os preços, que já estavam altos, dispararam em consequência da escassez.
No ano passado, fala-se em normalização desse nó de suprimentos no final do primeiro trimestre, que já acabou. E agora?
Só vai se normalizar no final do segundo trimestre. Estamos movimentando material de um lugar para o outro, do outro para um, para não enfrentar desabastecimento. Tivemos de importar nossa principal matéria-prima, que é o polipropileno, mas a situação não está fácil. Até o momento, conseguimos evitar paradas nas fábricas por falta de insumos.
A alta no custo vai ser repassada, totalmente ou em parte?
Sim, temos de repassar tudo. A Fitesa é uma empresa de transformação, não consegue absorver movimentos da magnitude que houve ao longo do ano passado. Não precisamos fazer isso mês a mês, como faz a Petrobras, mas em algum momento, temos de repassar.
Quanto foi o aumento de custo?
Cerca de 30% em dólares. Cerca de 85% do nosso negócio é em dólar, então usamos esse parâmetro. Em reais, chega a cerca de 70%.
Como veem o futuro?
O mercado não deve voltar a ser o que era até 2020. Estamos vendo que o número de nascimentos tem caído em torno de 20% a 30%. Deve haver uma estabilização, mas em patamares mais baixos do que os atuais.