O jornalista Leonardo Vieceli colabora com a colunista Marta Sfredo, titular deste espaço.
O economista Felipe Garcia entende que o país deveria discutir o redesenho de programas sociais para o pós-pandemia, e não apenas a forma de financiamento do Renda Cidadã, o substituto do Bolsa Família. O professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) reconhece que o debate não é simples, e a formação de consenso político representa um dos desafios. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista com Garcia, que foi secretário adjunto de Política Econômica do Ministério da Economia.
O que chama atenção no debate sobre o Renda Cidadã no país?
É evidente que o governo federal precisa achar uma saída para transformar o auxílio emergencial em algo permanente dentro da estrutura que já existe. Obviamente, muita gente vai precisar de ajuda, mesmo que digam que a economia pode se recuperar em formato de V (forte alta após queda intensa).
Este momento gera a oportunidade para revermos toda a rede de proteção social no país. Há uma discussão sobre o financiamento do Renda Cidadã, de onde podem vir os recursos. Mas é tão importante quanto isso a oportunidade para redesenhar a rede. Por que o redesenho é importante? Porque o sucesso de um programa social depende da capacidade de estar bem focalizado, com regras que estimulem a acumulação de capital humano, além do engajamento no mercado de trabalho formal.
Como é possível fazer o redesenho dos programas?
Dos programas de hoje, o Bolsa Família é, de longe, o melhor quando o assunto é levar o dinheiro para as pessoas mais pobres. Mesmo assim, não é perfeito. Também poderia ser redesenhado. Uma coisa fundamental é o critério de seleção para participação do programa. Hoje, no Bolsa Família, o critério está baseado na renda familiar per capita. Qual é a consequência disso? É um incentivo para que as pessoas subnotifiquem as informações no Cadastro Único, porque aumentam as chances de receberem os recursos.
Tem vários problemas relacionados a isso. O primeiro é que a qualidade da informação fica um pouco comprometida. Então, uma coisa importante a ser feita em um novo programa seria selecionar as pessoas com base em um indicador multidimensional de pobreza. É lógico que a baixa renda é sintoma de pobreza, mas também há outras coisas, como baixo acesso a conhecimento, à saúde de qualidade, à infraestrutura adequada, com coleta de lixo e saneamento básico.
O Cadastro Único tem todas as informações disponíveis para serem usadas na seleção de beneficiários. O resultado principal de uma alteração seria o ganho de focalização. O que é isso? É levar os recursos, principalmente, para as pessoas que realmente precisam. É central em um programa que queira reduzir a desigualdade. A focalização é condição necessária para que os objetivos sejam atingidos. Então, temos de aproveitar esta oportunidade para entender não só de onde tirar recursos, mas também para redesenhar programas.
Há exemplos de indicadores multidimensionais?
O Brasil já tem programas que selecionam pessoas com base em indicadores assim. Tem um programa chamado Família Paranaense, que usa índice multidimensional de pobreza para selecionar seus beneficiários. Não é nada absurdo. Usaríamos informações do Cadastro Único, que é uma ferramenta maravilhosa.
Além da alteração no critério de seleção, poderíamos ter benefícios diferentes com objetivos diferentes e com base no que já sabemos. Por exemplo, sabemos que a evasão escolar está muito concentrada no Ensino Médio. Poderíamos ter modalidade de benefício que estimulasse os jovens a permanecerem na escola. Enfim, temos oportunidades para pensar em coisas inteligentes, baseadas na ciência, em dados. Temos pontos bem interessantes na rede de hoje, mas existe uma colcha de retalhos.
Quais seriam os principais desafios para o redesenho?
O principal desafio é a formação de um consenso político, a ideia de que isso está acima de quem hoje está no governo. O Congresso tem condições para apresentar e modificar projetos. Tem outras complexidades também. Mexer em direitos que estão na Constituição é uma coisa complicada, teria de substituí-los. Como seria a reforma? Com mais de uma PEC (proposta de emenda constitucional)?
Só que precisamos formar consenso para ter uma rede de proteção social com boa focalização, não deixando descobertas as pessoas que mais precisam de auxílio. É uma coisa urgente, ainda mais neste momento de pandemia. Temos uma porção de programas sociais. O que imagino é que precisam conversar mais. Gosto bastante do que foi feito com o Criança Feliz. É um programa bem inspirado no Primeira Infância Melhor, que temos no Estado. Qual é o objetivo?
É visitar semanalmente famílias com crianças ou gestantes. A missão é a promoção de um ambiente familiar adequado. Busca potencializar a qualidade dos cuidados da família com a criança. O Criança Feliz centrou sua atenção nos beneficiários do Bolsa Família. É importante porque trabalha o desenvolvimento em várias dimensões, em um mesmo grupo, que é vulnerável. A integração pode potencializar os efeitos dos programas sociais.
Segundo o FGV Social, 15 milhões de brasileiros saíram da pobreza com o auxílio emergencial, mas podem retornar para essa faixa após o programa. Como avalia o cenário?
O dado de que a pobreza ficou menor em razão do auxílio emergencial escancara nosso subdesenvolvimento, nosso atraso. A transferência de R$ 600 foi suficiente para tirar uma porção de pessoas da pobreza. É evidente que o encerramento do programa vai ter de chegar. Vejo com muita preocupação.
Estamos falando de um cenário em que possivelmente o mercado de trabalho não vai responder de maneira tão firme com o destravar das coisas. A contratação no mercado formal é muito custosa. Então, é razoável imaginar que a iniciativa privada vai esperar um pouco antes de sair em processo de recontratação forte. Pode ser que jovens tenham de voltar a trabalhar e ajudar as famílias.
Há um risco no trabalho infantil. Isso tudo é muito delicado e preocupante. Em termos de educação, já estávamos mal antes. Se as consequências da pandemia sobre a renda estimularem as crianças a irem para o mercado de trabalho, o prejuízo não é só hoje. É por décadas, gerações, ainda mais em um país com ambiente de negócios ruim como o nosso.
Como descreve o momento de retomada na economia?
Nunca tínhamos experimentado uma queda na demanda e na oferta como esta. É uma novidade. A consequência é uma desorganização da produção. Cadeias de fornecimento foram paradas.
Agora, com o retorno da economia, ainda cheio de protocolos, certas demandas não estão sendo atendidas. Isso, obviamente, arrefece o ímpeto da retomada no formato de V.