Um dos formuladores da reforma administrativa, o gaúcho Wagner Lenhart detalhou à coluna alguns pontos do projeto. Esclareceu, por exemplo, que embora o Novo Serviço Público tenha de passar por três fases para ser implantado, outras mudanças não precisam esperar, como a regulamentação da demissão por mau desempenho. É tão importante para a equipe que está prevista sob duas formas: por lei ordinária, se a proposta de emenda constitucional (PEC) for aprovada com celeridade, ou por lei complementar, se a PEC demorar mais. Apesar do "climão" surgido entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e o ministro da Economia, Paulo Guedes, diz que não vê problemas para a tramitação das mudanças que Maia "tem muita vontade" de ver acontecendo.
A retirada da urgência para a reforma tributária deve acelerar a tramitação da administrativa?
Pessoalmente, acho que poderiam tramitar as duas juntas, não vejo uma sendo empecilho para a outra. Mas confesso que a parte política não é meu forte, sou do quadro técnico. Acredito que uma não impediria a outra.
O climão entre o ministro Paulo Guedes e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, pode atrapalhar a reforma?
Vi só as manchetes, mas sei que o presidente Rodrigo Maia considera importante a pauta da reforma administrativa, vem destacando isso há muito tempo. Acredito que não vá prejudicar, porque ele tem muita vontade de ver isso acontecendo.
Há perspectiva de aprovação da PEC ainda neste ano?
Propostas de emenda à Constituição não são processos legislativos simples, têm trâmite complexo. Mas o que a gente tem visto é que seria possível, mas também sabe que é muito difícil. Sabemos que, mesmo quando avança com rapidez, um processo como esse demora de cinco a sete meses.
Demos início a um processo de transformação. É um primeiro passo. É um passo importante, que faz uma mudança profunda na administração pública brasileira.
E sem uma eleição municipal no meio, não?
É verdade, bem lembrado. Mas demos início a um processo de transformação. É um primeiro passo. É um passo importante, que faz uma mudança profunda na administração pública brasileira. A última grande mudança feita nesse sentido foi em 1998, lá se vão 22 anos. E ousaria dizer que esta é mais profunda do que a de 1998. Agora, vai ser um processo de construção dentro do Congresso, primeiro da aprovação da PEC, depois tem todo um conjunto de leis que precisam ser revisitadas.
O que muda quando e se a PEC for aprovada?
A maior parte da PEC vai demandar regulamentação. Vamos precisar de um projeto de lei complementar que vai estabelecer o Novo Serviço Público e de uma série de outros instrumentos normativos que vão regulamentar a PEC. Mas a ideia é acompanhar a tramitação e qual vai ser a redação final definida pelo Congresso, e já deixar essas normativas bem encaminhadas, para que, quando a PEC for aprovada, já ingressem os outros projetos. Como são infraconstitucionais, a tramitação é mais fácil. É importante lembrar que alguns ajustes podem ser feitos de pronto, antes de a PEC ser aprovada. E aí vai ser uma articulação com o Congresso para ver o momento político adequado.
Projeto sobre insuficiência de desempenho é um dos que não precisam esperar a PEC.
Um desses pontos é a demissão por mau desempenho?
É o projeto de lei complementar sobre insuficiência de desempenho. Esse é um dos que não precisam esperar a PEC.
Existe sinal verde do governo para avançar?
Do ponto de vista técnico, estamos trabalhando desde o início de 2019, não só nessa proposta de emenda à Constituição mas em todos os projetos que complementam. Há alguns casos em estágio bastante avançado.
Existe possibilidade de instituir demissão por mau desempenho por lei ordinária?
Hoje, na Constituição, há previsão de que é necessária uma lei complementar. Na PEC, estamos propondo mudar para que seja possível fazer por lei ordinária. No entanto, isso não impede de propor ao Congresso uma lei complementar para regulamentar a demissão por insuficiência de desempenho. Respeitaria a Constituição atual e valeria para as três esferas de governo (federal, estadual e municipal) e os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário).
Inclusão de membros de poder na reforma poderia levar a uma discussão jurídica infindável.
Por que magistrados, parlamentares e procuradores, entre outras categorias da elite do serviço público, ficaram fora da proposta? Se vai mudar a Constituição, não poderiam ser incluídos?
A Constituição pode ser modificada para fazer isso. A questão é que o Executivo não pode propor para membros de outros poderes. Esse é o entendimento da nossa consultoria jurídica. Nem em uma PEC. Assim como o Legislativo não pode propor uma PEC regulamentando o serviço público, por ser competência do Executivo, não podemos mudar as regras para membros de outros poderes. Cada um tem de propor, ou o Congresso pode propor. É a parte legítima para fazer. Alguns juristas têm interpretação de que seria possível. O primeiro problema é que nossa consultoria entende que não é. Segundo, poderia levar a uma discussão judicial infindável, se tem vício de origem ou não. A emenda constitucional 19, de 1998, espera até hoje para ser julgada no STF, 22 anos depois. Por isso, hoje há dois artigos 39 na Constituição: o original e o modificado pela emenda 19,até hoje não foi validado por vício de forma. Quisemos evitar algo semelhante.
Há expectativa de que o Congresso possa incluir os membros de poder?
Não há conversa sobre esse assunto. O Congresso pode fazer esse movimento, mas é uma decisão do Legislativo.
Talvez aconteça de a sociedade pressionar para que haja essa inclusão.
A exclusão de carreiras consideradas privilegiadas não pode prejudicar a imagem da reforma administrativa e, assim, comprometer suas chances de aprovação?
Acredito que não. A opinião pública vai ter um papel fundamental. Não vejo essa transformação da administração pública como projeto de um governo só. Tem de ser um projeto de país. A sociedade tem de se convencer. Não é algo que se resolve no curto prazo, do dia para a noite. Leva tempo. Talvez aconteça de a sociedade pressionar para que haja essa inclusão. Mas não deve frear a tramitação.
Havia um cálculo de impacto fiscal de R$ 500 bilhões em 10 anos no projeto original. Com a aplicação apenas para os novos servidores, há uma nova previsão?
A gente nunca divulgou cálculo de impacto da reforma, até porque ainda não é possível trazer uma conta minimamente precisa para debate público neste momento. Foi construído um modelo que será fundamental para o equilíbrio das contas no futuro, mas precisar valores vai ser possível quando entrar na segunda e na terceira fases. Aí haverá detalhes sobre os salários iniciais dos servidores que vão ingressar, como vai ser a taxa de reposição. Cada governo estadual, cada município, pode ter uma política remuneratória, uma taxa de reposição. Mesmo na moldura geral do Novo Serviço Público, como o Brasil é uma federação, Estados e municípios terão liberdade para definir estratégias.
Contamos que a reforma administrativa seja aprovada até o final deste mandato.
Se não é projeto de governo, significa que não se conta com a aprovação total no atual mandato?
Contamos que a reforma administrativa seja aprovada até o final deste mandato. Não tem data, mas se pretende concluir ainda neste governo. Digo que é projeto de país porque não é só a aprovação das leis. Visitei Portugal, que está em processo de transformação do Estado há quase duas décadas. Fizeram o movimento inicial na virada do século, aprofundaram em 2009, conseguiram bons resultados de equilíbrio das contas, crescimento expressivo, melhoria na prestação de serviço público, mas dizem que ainda muito a fazer.
Profissionais que terão vínculo de experiência sem estabilidade, mesmo em carreira de Estado, não poderão ser alvo de pressão e coação?
A parte da formação ser uma etapa do concurso é algo que já existe em algumas carreiras, como na diplomacia e na Polícia Federal. O estágio probatório tinha essa função, que acabou se perdendo, por isso propomos essa mudança. O objetivo é que, além de o servidor ter o conhecimento técnico que apresentou no período de provas e títulos do concurso, que mostre na prática que vai entregar bons resultados para a administração. Vai se estabelecer um processo competitivo, em que nem todos vão passar.
Não é porque o chefe não gosta do João ou da Maria que eles serão demitidos. Isso não será permitido.
Quem vai avaliar, o gestor direto, um comitê?
A avaliação será baseada em critérios objetivos, com possibilidade de ampla defesa para o profissional está está nesse vínculo de experiência, para que chegue o final do certame e não haja injustiça. Na PEC, estabelecemos que nenhum servidor, inclusive se estiver em vínculo de experiência, pode ser desligado por questões político-partidárias. Haverá um comando na Constituição para evitar isso. Todos os procedimentos vão respeitar os princípios constitucionais da impessoalidade, da transparência. Não é porque o chefe não gosta do João ou da Maria que eles serão demitidos. Isso não será permitido.
Como garantir que isso não vai acontecer?
Teremos de estruturar um processo sólido e justo, mas há duas salvaguardas. Primeiro, cada vez temos mais publicidade e acesso à informação. Isso vai ajudar muito a ter controle social sobre o processo. Segundo, há o Judiciário, que em caso de injustiça pode ser chamado a corrigir.
Não considero um grande poder ao presidente, nem um jabuti, porque não se trata só da mudança na gestão de pessoas, mas de transformação da administração pública.
Há um jabuti (assunto não diretamente relacionado com o objeto da legislação) na proposta, que autoriza o presidente da República a extinguir órgãos e autarquias?
Hoje, se o governo quiser mudar o nome da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, tem de mandar para o Congresso. Outro exemplo, mais complexo, foi a extinção do Ministério do Trabalho, que suscitou indagações sobre as políticas de emprego. Tudo o que era feito continua, dentro da estrutura do Ministério da Economia. Trata-se de dar ao Executivo a mesma autonomia que Legislativo tem, de fazer esse tipo de mudança sem ter de pedir autorização. Depois, está nas mãos do Congresso decidir se acha pertinente ou não dar essa autorização. Não considero um grande poder ao presidente, nem um jabuti, porque não se trata só da mudança na gestão de pessoas, mas de transformação da administração pública.
Como deverá ser a seleção simplificada para as funções que não serão carreira de Estado?Poderá ser prova, uma certificação, um conjunto de avaliações, vai depender de caso a caso. Teremos as atividades em que a pessoa vai ficar por prazo indeterminado no serviço público, ingressando por concurso público, que é o cargo típico de Estado, e tem outro grupo, por prazo determinado, com caráter temporário, com ingresso por seleção simplificada. Será um processo mais rápido, até pela natureza dessa atividade. Mas não significa que vai permitir que as pessoas coloquem quem elas queiram dentro do serviço público. Será estruturado, com meritocracia, baseado na impessoalidade. Para cargos de assessoramento e liderança, vai continuar sendo de livre nomeação, como é hoje.
Haverá limitação para o número desses cargos, como se previa?
Será definido na segunda e na terceira etapas.
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