
Monica de Bolle foi uma das primeiras economistas brasileiras a defender imediata e massiva intervenção do governo para conter o impacto econômico do coronavírus. Teve parte de sua formação na chamada Casa das Garças, centro do pensamento que, no passado recente, foi chamado de neoliberal no Brasil. Escreveu um livro, Como Matar a Borboleta Azul, com duras críticas à gestão fiscal no governo Dilma Rousseff e hoje vive perto de Washington, onde atua como pesquisadora sênior no Peterson Institute for International Economics. Na véspera da entrevista, Monica trocou o isolamento voluntário pelo obrigatório, por ordem do governo do Estado de Maryland, onde vive, perto da capital americana. Exasperada com a demora e a timidez das medidas de apoio econômico no Brasil, vê o governo "atrasado" e "inerte".
Como foi a experiência de entrar em isolamento forçado?
Moro na região de Washington, no Estado de Maryland. Todos os Estados adjacentes entraram em lockdown, quarentena absoluta. As pessoas só podem sair de casa para se exercitar, ir ao mercado, à farmácia e ao médico. Nada além disso. Não podem frequentar parques, nem se aglomerar em lugar algum. Haverá monitoramento policial, não podem sair do Estados. As medidas endureceram muito nas últimas 24 horas. Os casos estão aumentando. No último final de semana, houve aumento expressivo na região, por isso foi adotada essa quarentena mais drástica. A esperança é de que isso possa impedir o quadro de catástrofe e colapso do sistema de Nova York. Para nós, o efeito é mais psicológico, já não saímos de casa. Meus filhos estão sem aula, vão começar a ter online na semana que vem. Eu e meu marido estamos trabalhando em casa, o que é uma roda-viva alucinante, pois não para: você começa de manhã e vai embora, e ainda por cima se você estiver trabalhando diretamente na crise uma forma ou de outra. Meu marido trabalha no Banco Mundial, eu, no Peterson Institute for Internacional Economics, estamos na linha de frente de assistência aos governos em relação as medidas econômicas. Além disso estou fazendo um trabalho a parte para o Brasil para identificar uma forma de colocar as medidas corretas em andamento.
Você foi uma das primeiras a apontar a necessidade de intervenção pesada do governo, hoje quase consenso entre economistas no Brasil. O que viu antes?
Não só no Brasil, as pessoas demoraram muito para constatar que, para entender o que essa crise representaria em termos econômicos, era preciso entender o que seria na saúde pública. Desde que houve a eclosão na China, passei a ler artigos científicos sobre a doença, e também a acompanhar os dados sobre o rastreamento. O que chamou atenção foi o fato de que as pessoas ficavam um tempo enorme nos hospitais. Também conversei com muita gente, com infectologistas e epidemiologistas. No final de janeiro, li um artigo do Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus (ICTV), órgão que repassa para a Organização Mundial da Saúde (OMS) a taxonomia do novo vírus. Relata de forma muito clara por que decidiram chamar de SARS-CoV-2. Sars é a sigla em inglês para Síndrome Respiratória Aguda, nome dado a doença que acometeu a China e outros países asiáticos entre 2002 e 2003. Teria um desenvolvimento clínico que poderia ser muito complicado. Só que, desta vez, com grau de contágio imenso e a população desguarnecida, pois ninguém tem imunidade ao vírus. Como as medidas para conter a Sars original foram quarentenas draconianas nos países asiáticos e como isso já era o que a China estava fazendo, aliadas à transmissibilidade do vírus, ficou claro que os países ocidentais estavam muito mal preparados, porque, com exceção do Canadá, ninguém tinha visto a Sars. Percebi que estávamos lidando com uma situação inédita em saúde, com impacto brutal na economia. Para entender o aspecto econômico dessa crise, é preciso entender o epidemiológico. Com a parada súbita da economia e o vácuo deixado pelo setor privado, o suporte deveria ser dado pelos governos. Os governantes teriam de ter uma resposta massiva na saúde, na proteção social, no amparo as empresas e aos bancos para evitar uma crise financeira. Por isso, defendi desde o princípio que no Brasil não era mais o momento para ficar batendo na tecla das reformas, era preciso criar medidas concretas para aumentar o gasto público em áreas específicas, com o montante que fosse necessário. Em outras palavras, aumentar os gastos públicos errando para mais, pois errar para menos seria fatal. Fui muito criticada por essas posições, até de uma forma bem deselegante por parte de alguns economistas. De lá para cá, formou-se um consenso.
O governo nada fez para se preparar, e as pessoas não têm como receber o benefício, que é um escândalo de inércia nessa situação calamitosa.
Como avalia as medidas adotadas pelo governo brasileiro até agora?
O governo brasileiro está completamente atrasado e incrivelmente inerte diante dessa crise inédita. São insuficientes. A primeira medida que deveria ter sido tomada, assim que foi declarada a calamidade pública, que suspende todas as restrições previstas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, deveria ter sido liberar um caminhão de recursos para o SUS, de R$ 50 bilhões a R$ 60 bilhões. Não chegou nem perto disso, fala-se de em R$ 5 bilhões a R$ 10 bilhões. Depois, tem a rede de proteção social, que o governo quer dizer que fez, mas na realidade quem fez foi o Congresso, ao aprovar uma renda básica emergencial para atender pessoas desassistidas, em particular informais e autônomos, também permite que pessoas que recebem Bolsa Família migrem para esse programa de renda básica, que não tem condicionantes. Agora o governo precisa desenvolver uma logística de cadastro e de recebimento do benefício. Já era para estar pronto. O governo nada fez para se preparar, e as pessoas não têm como receber o benefício, que é um escândalo de inércia nessa situação calamitosa. Também é preciso adotar medidas para sustentação das empresas, o Banco Central se mexeu, mas o governo ainda bate cabeça. Agora se fala em medida provisória para diminuir a jornada e reduzir salário. Isso é um absurdo, não é o momento de reduzir salário, é de uma bobagem inominável. Nenhum outro país está tomando esse tipo de medida, nem aqui nos Estados Unidos. Precisaríamos de uma linha de ação coordenada que unisse o Banco Central, os bancos públicos e o Ministério da Economia. Porém, estamos em absoluta desarticulação. Não vai dar certo se seguirmos por esse caminho e o custo disso para a população e para a economia será enorme.
Pedidos de ajuda estatal, no Brasil de hoje, costumam ser carimbados de "comunistas". Como você, que tem formação liberal, vê essa reação?
Meu conhecimento teórico e prático é de que crises são momentos em que a economia, por choques internos ou externos, fica desequilibrada. Nestes momentos, esses rótulos não valem. Na crise, o mais importante a fazer é a reconhecer e tomar, de imediato, as medidas necessárias. Quanto mais demora, mais grave será a crise que a sociedade terá de enfrentar. Nisso não existe ideologia, todas essas formas de pensar caem por terra totalmente, não tem linha econômica a seguir. Em uma crise se responde com urgência. A questão sobre o que é ser liberal vai voltar com mais força no período pós-crise. Agora, notamos, pela própria resposta dos governos, que há um entendimento emergencial. No pós-crise, haverá uma discussão sobre o papel de redes de proteção social. Liberalismo não é incompatível, como muita gente pensa, com gastos sociais. Um dos princípios é dar igualdade às pessoas no ponto de partida, o que só é possível quando você dá acesso. O problema é que, no Brasil, essa visão de mundo se perdeu. O liberalismo evoluiu para uma visão diferente e, após essa crise, a percepção da importância das redes de proteção social vai ganhar importância.
E como o Brasil tende a sair no pós-crise, se entra mais frágil?
O mundo inteiro estará em situação fiscal complicada. Todos os países terão peso maior da dívida em relação ao PIB. É verdade que o Brasil está mais frágil, mas a Itália também. Não é diferente do que o mundo viveu no período pós-guerra. Depois da Segunda Guerra Mundial, houve um pico imenso de dívidas, e para facilitar a reconstrução, surgiu o multilateralismo. Vejo o pós-crise de forma semelhante. Acredito firmemente que o mundo terá de trabalhar de forma coordenada. Essa preocupação hoje é irrelevante, pois todos os países estão no mesmo barco. Esse novo multilateralismo será voltado para as construção de rede de proteção social nos países. Essa crise e a epidemia expõem que a solidez da economia de um país, seja qual for, é tão sólida quanto a parcela da população mais vulnerável. É uma mensagem otimista, mas não é irrealista, não. Temas como construção de infraestrutura verde, descarbonização e ambiente vão crescer. Mudanças climáticas têm efeito sobre a desigualdade, por afetar muito as pessoas em vulnerabilidade social. Por tanto, esses são temas que o novo multilateralismo deve abraçar.
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