No dia 3 de setembro, a produção de petróleo na área do pré-sal completou 10 anos. Na média do primeiro semestre, foram extraídos 1,5 milhão de barris (159 litros) a cada dia. Conforme a Petrobras, é mais do que extraem Reino Unido, que tem reservas no Mar do Norte, ou Omã, no Oriente Médio, cada um com produção média de 1 milhão barris diários em 2017. Geólogo aposentado da estatal, o gaúcho Marco Antônio Pinheiro Machado, participou das atividades que levaram ao anúncio da descoberta, em 2006. Aborda no livro Pré-Sal: A Saga, o período intenso entre a confirmação do potencial da área, os desafios, o início e a consolidação da produção.
Qual o efeito, na equipe de pesquisa, das acusações de uso político do pré-sal?
Não batia. A gente estava muito concentrado e até achava natural aquele tipo de reação. Petróleo é um bem muito estratégico, sempre esteve na pauta de qualquer politico. A gente via que, aos poucos, a sociedade iria começar a assimilar. Mas acho que, até hoje, existe grande ignorância sobre isso. Tenho ouvido pessoas esclarecidas, que leem jornal, e acreditam que o pré-sal não existe, que é uma peça de marketing.
Como quem trabalhou diretamente na área vê essa descrença?
É inacreditável, gente da elite, esclarecida, advogados. Quem tem que interpretar é a imprensa. Geologia é um assunto pouco conhecido no Brasil. Se sabe pouco sobre o subsolo, todo mundo tem uma ideia errada de como se forma o petróleo, como se encontra, como está na natureza. Em países desenvolvidos, como Estados Unidos, os da Europa e Rússia, a geologia é muito popular. Uma das finalidades do livro foi aproveitar o gancho do pré-sal para passar um conhecimento de geologia para a sociedade. A ignorância das pessoas está mais ligada a essa falta de cultura científica em geral.
Como foi a primeira vez em que soube do pré-sal?
Quando começou a movimentação do pré-sal, já tinha uns 20 anos de experiência e trabalhava em lugares estratégicos. Cheguei porque fazia parte de um exército de pessoas muito bem treinadas. Na época, trabalhava na bacia de Santos, era geólogo de interpretação, que atua em pares de geólogos e geofísicos. Trabalhava em duas bacias, a de Santos e a de Pelotas e estava examinando blocos de leilões anteriores. Tinha muita experiência em todas as bacias da margem costeira. Fazia, com geofísicos, a interpretação de linhas sísmicas (espécie de perfil do subsolo marinho feito a partir da propagação de ondas sísmicas, ou seja, de vibrações). É o dado mais importante para a exploração de petróleo. Os geofísicos interpretam as linhas e os geólogos elaboram mapas do modelo geológico. É colocar em desenhos ou textos o que se "enxerga" (pelo método sísmico) no subsolo. São incluídos todos os fatores que levam a acumulação do petróleo e os que levam a não ter. O objetivo é verificar a existência de acumulação comercial.
Como você é gaúcho e mencionou a Bacia de Pelotas, tem petróleo por lá, afinal?
A Bacia de Pelotas é enorme (do Paraná ao Uruguai, com 80% da área submersa mas também parte terrestre). O problema, entre aspas, é que não tem sal na bacia. É um problema porque o sal é um excelente isolante físico, não deixa o óleo escapar. Mas é uma bacia muito grande, muito profunda, pouco explorada. Pode ter petróleo no pós-sal ou na posição do pré-sal, mas não tendo sal. É uma bacia a ser explorada. É lógico que o risco de não encontrar óleo é muito maior.
Havia preocupação sobre as interpretações de que as condições de produção do pré-sal eram difíceis, existia risco de corrosão dos equipamentos?
Não havia a mínima preocupação com isso, nem com CO2 ou H2S (gás tóxico e corrosivo). Com lastro, equipe de retaguarda, centro de pesquisa e experiência, eram problemas que, a qualquer momento, a gente ia ultrapassar, como aconteceu. Nós, técnicos, ríamos quando líamos essas coisas ditas por gente supostamente entendida.
Não houve surpresa com o fato de o volume extraído do pré-sal ter superado o do pós-sal, menos de uma década depois?
O pré-sal já representa 55% do total. Tudo veio aos poucos, mas muito rápido. A ficha foi caindo aos poucos. Estava acostumado com grandes descobertas em Campos, mas é claro que dava uma surpresa agradável tremenda. Principalmente com os dois primeiros poços, Tupi e Parati. A gente viu antes de sequer ter sido propagado pelo governo, sabia que era algo grande. Aí sim houve ponto de inflexão, quando se viu que o pré-sal era uma camada com chance de ter muito petróleo, porque tinha 800 a mil quilômetros de extensão. Esse foi o ponto de inflexão.
Afinal, como o pré-sal pode beneficiar o Brasil?
Têm dois aspectos. Em volume, é muito grande e tem uma característica que nenhum outra parte do Brasil teve. Quando começa a descoberta, os dados vão diminuindo conforme se estuda, se vê o volume diminuindo. Com o pré-sal foi ao contrário, a cada vez que estudava, maior era o volume que encontrava. O volume que está lá embaixo é muito grande. Agora, como aproveitar é outro livro, outra história. Se a gente não for afetado pela maldição do petróleo (teoria de que países com fartos recursos naturais crescem menos por que a fonte de riqueza tende a gerar desperdícios, corrupção e entraves burocráticos, beneficiando grupos influentes e desorganizando a economia), tira o país da miséria.
Já não fomos afetados pela maldição?
Ainda não. Tem muito petróleo lá embaixo, a Petrobras ainda tem muita reserva, tem parcerias em blocos bons, por terem vendido coisas boas a preço de banana. Minha expectativa é de que o próximo governo seja nacionalista e proteja a Petrobras e a sociedade, gerindo com muita responsabilidade essa imensa riqueza em benefício do povo brasileiro. A maldição está nos costeando, mas ainda não fomos afetados.
E quanto seria esse grande volume?
Faço uma estimativa, de conta de padeiro, que é para o leigo entender, e chego a 100 bilhões de barris. Chego a esse número toscamente, mas tenho experiência, errava pouco na Petrobras. Isso é dentro do polígono do pré-sal, área delimitada muito no início. Tem gente da UERJ, que fez estimativa mais científica, com software especializado, e chegou a um número bem maior, de 170 a 180 bilhões. Isso é só volume recuperável, que pode colocar na superfície. Tira-se só de 20% a 30% do que tem lá embaixo.
Em que casos teria havido "venda a preço de banana", como você classifica?
Uma das vendas foi Carcará. Trabalhei muito lá, sabia mais que todo mundo. Como não estou mais hoje, pelo que leio da evolução do trabalho lá, está se relevando muito grande, muito auspicioso. É uma jazida que tem uma característica diferente das outras e foi vendida muito barato pela Equinor, antiga Statoil (estatal de petróleo da Noruega). Eles compraram toda a área onde está Carcará, e a jazida sai para fora do bloco. Em outro leilão, a Equinor comprou o resto, e a Petrobras não disputou. No mais recente, a Petrobras ficou com uma provável jazida ao lado de Carcará. Parece que recuou, voltou a comprar blocos ao lado de Carcará, porque vendeu algo que já sabia que era muito bom.
Como vê o argumento da Petrobras de que não tem recursos para investir em tudo, por isso precisa vender e fazer parceiras?
Não me convence. A Petrobras tem mais credibilidade do que o próprio Brasil para conseguir dinheiro no Exterior. Brinco no livro ao caracterizar a Petrobras como um Estado dentro do Estado, um tentando engolir o outro. A Petrobras foi fiadora do país, quando estava quebrando, na década de 1980. Nunca houve esse problema, e produz 2,5 milhões de barris por dia. Tem um tremendo retorno financeiro, todo mundo confia, é uma das maiores empresas do mundo em petróleo. Com o pré-sal, mostrou que o segmento de exploração talvez seja o maior do mundo. Na minha opinião, tem capacidade tecnológica e financeira.
Os danos provocados pelos desvios apontados na Lava-Jato não afetaram finanças e imagem da empresa?
Sai muito melhor, olha o lucro que está dando (a Petrobras anunciou lucro de R$ 17 bilhões
no primeiro semestre). Daqui a uns dois anos, vai ser algo passado, como foi um daqueles grandes acidentes na bacia de Campos. É uma batalha vencida, é como sair de batalha de libertação nacional e voltar com glória, moral. Não diminui em nada, essas batalhas engrandecem a Petrobras. Estou aposentado há dois anos, estava lá dentro quando aconteceu a Lava-Jato. Foi minha última temporada, nós últimos dois anos trabalhei como gerente nos Estados Unidos. Mas nem cheguei perto de Pasadena (risos), que é uma empresa de downstream (refino e abastecimento), eu trabalhava no upstream (exploração e produção). Acompanhei de longe. Nosso pessoal sentiu bastante, mexeu com o ânimo, não o de trabalhar, mas mexeu bastante. A Lava-Jato não detectou, porque não teve, até agora pelo menos, qualquer desfalque no segmento de exploração. O que ocorreu foi nas áreas de refino e serviços. A área de exploração e produção passou completamente incólume, nunca soube nem de boato de irregularidades.
Como você vê o debate sobre privatização da Petrobras?
O livro tem cunho nacionalista, mas não é panfletário. O maior erro que o Brasil pode fazer hoje é privatizar a Petrobras. Para que existe uma estatal? Primeiro porque é um bem estratégico, nunca faltou petróleo e combustível na Petrobras desde que atua. Faltou por outros motivos, como greve, mas a empresa nunca falhou. Como estatal, tem de gerir um bem estratégico e cumprir função social, mas com seus limites. Talvez isso tenha sido extrapolado nos últimos anos. A empresa admite todos seus funcionários por concursos públicos, muito concorridos. Pega gente de primeira linha, há risco de isso acabar. O pessoal da minha geração vestia a camiseta. Outro perigo é alguém eleito começar a esquartejar, vender pedaços. linhas de gás. ativos importantes. É preciso ter cuidado com isso.
O questionamento de quem vê o preço dos combustíveis subindo sem parar não faz sentido?
Isso é um problema menor. O preço não é tão alto, se comparar com os Estados Unidos. Mas os Estados Unidos praticam esse tipo de reajuste há 150 anos, estão acostumados. Aqui é diferente. Somos um país de Terceiro Mundo. Se comparar nossa gasolina com a que é vendida na Europa, é parecida. Não sei qual a política de preços ideal. Mas vimos que não funcionou essa adotada na gestão do Pedro Parente.