Em uma de minhas primeiras colunas de jornal, na década de 1960, escrevi sobre “aonde vão ao partir os nossos mortos”. Eu era jovenzinha, numa fase luminosa da vida. Pouca perda grave. Nesta altura agora, muitos, demasiados amigos, conhecidos e amados meus se recolheram (ou se libertaram, se expandiram?) nesse “outro lado”, seja o que for que ele é. Depende da crença, da filosofia de vida, depende do desejo e do sonho de cada um.
“Os mortos pedem licença/ para morrer mais”, escrevi num poema há bem pouco tempo, quando os meus já eram um grupo respeitável. Que não os oneremos demais com nossas angústias e inconformidade. Fácil escrever, difícil fazer, mas a gente consegue, se tiver amores bons que aqui ainda nos apoiam, convocam, nos fazem sentir que somos queridos e úteis e que tudo faz algum sentido. O horizonte clareia, o coração mesmo enlutado se acalma e – se amamos a vida – vivemos. De preferência, apesar da tristeza sem eternas queixas, que ninguém precisa aguentar.
Voltei ao assunto pelo impressionante número de mortes que nos impressionaram só nestes últimos dias: Brumadinho, enchente no Rio, meninos no clube de futebol, e o amado de todos, ainda que às vezes temido, Boechat, num acidente de helicóptero. Ele, que revolucionou para sempre o jornalismo brasileiro, e acabou amigo de todos, ao menos de muitos, ao menos meu – que não o conheci pessoalmente. Mas era como se conhecesse. Seu tom de voz, sua risada, suas brincadeiras e suas indignações – comovente sua mãe, Mercedes, aos 87 anos, revelando ao falar dele essas mesmas inclinações, esses valores que Boechat deve ter recebido dela. Seu humor e seu rigor. Ele faz falta a cada um de seus ouvintes ou espectadores: era uma boa coisa, positiva, confiável, neste Brasil que mal começa a dar novos passos em direção à esperança.
Seja como for, a velhíssima Senhora Morte nos espera no fim do trajeto, cedo ou tarde, cedíssimo às vezes, ou tardíssimo quando temos idade avançada e já nada vemos, nem sabemos, mal sabemos que estamos vivos. Porém o escândalo nestes dias não foi a morte individual, no momento destinado a cada um: o horror são mortes coletivas, evitáveis, como disse Raquel Dodge, como diz a maioria dos brasileiros. Mortes – não porque os responsáveis não soubessem do perigo, porque sabiam e fingiram ignorar, arriscando – e destruindo – a vida de centenas e centenas como em Brumadinho, ou mais de uma dezena no time de futebol no Rio, ou mesmo uma vida só que fosse, por descuido ou por futilidade.
Pensamos, avaliamos rapidamente que é muito chato, muito caro, muito menor do que nos afirmam os técnicos; que amanhã a gente dá um jeito. Ou andamos meio anestesiados quanto a esse valor supremo, inegável, às vezes difícil e pesado: A VIDA HUMANA?
Vai então, que a Velhíssima Senhora faz aquela visita a outra velha dama, em seu apartamento no Rio. Bibi Ferreira, encantadora na vida mas rigorosa no trabalho, reclama do atraso. Finalmente as duas saem de braços dados pelo céu sobre os mares, conversando como boas amigas. Bibi pergunta: "E aquele menino, o Boechat?". "Esperando por você pra trocarem ideias e risadas, um pouco condoídos das humanas trapalhadas aí embaixo..."