Primeiro, foi O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, no Rio Grande do Sul. Agora, o alvo de debate é O Menino Marrom, de Ziraldo, cuja suspensão em escolas do interior de Minas Gerais a Justiça acaba de derrubar. O que as duas obras têm em comum? Ambas tratam de racismo e - coincidentemente ou não - foram censuradas.
Isso diz mais sobre os censores (que, é claro, não gostam de ser chamados assim) do que sobre os autores censurados, aliás, dois nomes consagrados da literatura brasileira.
Tenório é um dos escritores mais brilhantes da nova geração: venceu o Prêmio Jabuti, o mais importante da área no Brasil, e já teve sua obra vendida para mais de 10 países. Ziraldo, falecido em abril, aos 91 anos, dispensa apresentações. Deixou um legado incalculável, em especial, para as nossas crianças, a começar pelas aventuras do Menino Maluquinho.
Nas duas situações, escolas e gestores cederam às pressões de pais escandalizados com trechos das obras, lidos fora de contexto.
No caso de Tenório, ocorrido em março deste ano e depois revisto, a diretora de uma escola de Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo, concluiu que era inadequado manter o livro na biblioteca, pois continha passagens sexuais e termos de "baixo calão".
O livro, na verdade, fala de racismo estrutural. Todos sabemos que não é um tema fácil, mas precisa, sim, ser abordado em sala de aula, sob a orientação de bons professores. Os tais termos "chulos" e a objetificação sexual do protagonista negro não entram na história de forma gratuita. Eles são parte de uma realidade sobre a qual não devemos "ficar escandalizados", mas tentar compreender para mudar.
No caso de Ziraldo, a obra infantil publicada em 1986 conta a amizade entre um menino marrom e outro cor-de-rosa. Em 32 páginas, como detalha reportagem publicada em Zero Hora, ele descreve a vida dos dois personagens e conta sobre suas peripécias de crianças descobrindo o mundo. A curiosidade dos meninos acerca das cores traz à tona, de uma maneira lúdica, questões sobre diversidade racial.
Os trechos criticados estão descritos em algumas linhas das páginas 24, 26 e 27. Em um deles, ao ter a sua oferta de ajudar uma velhinha a atravessar a rua recusada de forma rude, o menino marrom passa a ir, todas as manhãs, observar a travessia da idosa. Perguntado pelo amigo sobre o porquê, ele responde: "Eu quero ver ela ser atropelada."
É chocante? Sim, os pais não estão errados em pensar assim. Mas é preciso ir além na interpretação do texto. Por que Ziraldo escreveu isso? O trecho não seria uma oportunidade ímpar para discutir o racismo e suas consequências em sala de aula?
Com razão, o juiz Espagner Wallyssen, de Conselheiro Lafaiete (MG), derrubou a suspensão do livro nas escolas do município, que fica a cerca de 100 quilômetros de Belo Horizonte. O pedido de análise judicial partiu de uma professora.
Para o juiz, a suspensão não só configurou censura como violou a liberdade de cátedra dos educadores. Nas palavras do magistrado, “mostra-se inadequada a suspensão de livro que retrata o racismo de maneira pertinente, pois, ao assim proceder, a administração pública está tolhendo dos estudantes ensinamentos importantes para o seu desenvolvimento como cidadãos de uma sociedade diversa e plural”.
Você pode até discordar da decisão, mas o juiz está certo. Ainda há margem para recurso. Espero, sinceramente, que não ocorra.