Sim, é revoltante o que se viu na Serra gaúcha. Não dá para “passar pano”, como disse minha amiga Giane Guerra, assim como não há justificativa para o uso de mão de obra em condições análogas à escravidão. O caso precisa ser investigado a fundo, e os responsáveis têm de ser punidos, doa a quem doer. Dito isso, vou logo avisando: faço parte da turma que não pretende virar as costas para o Vale dos Vinhedos.
A região é um dos destinos mais bonitos do Rio Grande do Sul, cravejado de pequenas propriedades onde viceja o turismo rural, com ótimos hotéis e pousadas, passeios de bicicleta, locais com produção orgânica e agricultura familiar, boa comida e bom vinho. Por aqueles morros, circula uma economia robusta, construída ao longo de décadas de trabalho duro e que sempre orgulhou os gaúchos.
É curioso como uma reputação sólida pode tombar da noite para o dia - e, nesse caso, não foi à toa. Testemunhamos o maior resgate de trabalhadores subjugados da história do Estado, tratados de forma cruel e desumana.
Mas sejamos justos: é um equívoco condenar uma comunidade inteira ao boicote pelo crime cometido por alguns.
Sim, eu sei. Três grandes vinícolas são investigadas pela contratação de serviços terceirizados da empresa responsável pelos empregados tratados feito bichos. Sim, eu também sei que pode ter havido cumplicidade de gente do entorno e até de policiais militares e que outros 23 proprietários rurais teriam utilizado os mesmos serviços.
Nada disso se apaga. É uma mácula que ficará para sempre na história da região. O poder público - em especial a prefeitura de Bento Gonçalves - agiu certo ao acolher e ajudar os 200 homens maltratados e assustados. O prefeito Diogo Siqueira tratou pessoalmente do caso e liderou, junto de entidades do setor produtivo, uma reunião por medidas concretas para remediar a situação. Uma série de ações foram anunciadas e são um bom recomeço.
A cadeia vitivinícola é muito maior do que o estrago causado por esse episódio. São milhares de produtores e dezenas de vinícolas. Que o caso sirva de lição para que o horror nunca mais se repita.
Sobre a nota do CIC
Depois que publiquei o texto acima, tomei conhecimento da nota oficial emitida nesta terça-feira (28) pelo Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC). A entidade associa o problema à falta de mão de obra e a "um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade". Como era de se esperar, o posicionamento se tornou alvo de críticas. Nada, absolutamente nada, justifica trabalho escravo, muito menos políticas sociais de apoio à população que vive na miséria.