As mortes inesperadas nos abatem especialmente. Em um dia triste pela despedida de Bebeto Alves, a notícia da morte de Gal Costa chegou nesta quarta-feira (9) pela manhã como um terremoto emocional para milhões de brasileiros. Sabia-se que em setembro ela sofrera procedimento cirúrgico para a retirada de um nódulo no nariz e, por recomendação médica, cancelara sua agenda de shows até o final de novembro. Mas as informações não davam conta da gravidade da doença que a abateria aos 77 anos.
Esses milhões de brasileiros que têm Gal na trilha sonora de suas vidas recapitularam as músicas que ela deixou. Nas redes sociais, voltou um debate antigo: qual a melhor, ela ou Elis? Os mais sensatos replicam: ambas. Gal leva a vantagem de ter vivido mais que Elis, que morreu 40 anos atrás aos 37. Mas essa é uma “disputa” boba. Agora, estão iguais. A coleção de sucessos de Gal é enorme. Gravou compositores de todas as épocas, lançou dezenas de compositores novos.
Nascida em Salvador, a adolescente Maria da Graça encontrou jovens que, como ela, estavam apaixonados por João Gilberto: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Tom Zé. Em 1964, apresentaram no Teatro Castro Alves da capital baiana o show Nós, Por Exemplo, estopim para todos eles. Mas ela é a primeira a gravar. Com o nome de Maria da Graça, lançou um compacto pela gravadora RCA em 1965, com as músicas Eu Vim da Bahia (de Gil) e Sim, Foi Você (Caetano).
O passo seguinte, já como Gal, é o álbum Domingo, dividido com Caetano em 1967. Bem bossa-novista, tem os futuros clássicos Coração Vagabundo e Avarandado. E aí vêm os festivais de música na televisão e o Tropicalismo. Ela foi a musa daquele movimento — como Nara Leão fora da bossa nova. Quando Gil e Caetano foram mandados para o exílio na Inglaterra, em 1969, por “subversão”, Gal manteve o movimento em ação, com seus discos de 1969, 1970 e 1971.
São dessa época sucessos como Sebastiana, Namorinho de Portão, Divino Maravilhoso, Baby, Cinema Olympia, Meu Nome é Gal, Falsa Baiana e London, London. Em 1971 vem o que muitos críticos consideram sua obra-prima, Fa-tal, Gal a Todo Vapor, álbum duplo que tem Antonico (Ismael Silva), Como 2 e 2 (Caetano), Sua Estupidez (Roberto/Erasmo), Assum Preto (Luiz Gonzaga), Vapor Barato (Jards Macalé) e, entre outras, a primeira gravação de uma música de Luiz Melodia, Pérola Negra.
No álbum seguinte, Índia, que tem talvez a mais bela interpretação desse clássico paraguaio, Gal canta pela primeira vez uma música de Lupicínio Rodrigues, Volta — e o compositor gaúcho estaria depois em vários discos. A seguir, estão Temporada de Verão ao Vivo, com Caetano e Gil, Gal Canta Caymmi, e Doces Bárbaros, com Cae, Gil e Bethânia. Em 1977 sai o também definitivo Caras & Bocas, onde estão Tigresa e Negro Amor, versão de It’s All Over Now Baby Blue, de Bob Dylan.
Os sucessos seguem com Folhetim (a melhor versão desse clássico de Chico), Paula e Bebeto (Milton/Caetano), Balancê (João de Barro), um disco dedicado a Ary Barroso, Festa do Interior (Moraes Moreira/Abel Silva), Açaí (Djavan), Meu Bem, Meu Mal (Caetano), Bloco do Prazer (Moraes), Estrela, Estrela (Vitor Ramil), Vaca Profana (Caetano). Enfim, até os anos 1990, Gal lançou um disco a cada dois anos, sequência que depois se espaçou — ficou sem gravar de 2005 a 2011, por exemplo.
Mas tudo o que ela deixou, 35 álbuns, três DVDs, centenas de shows quase até o fim, é suficiente para se dizer que Maria da Graça Costa Pena Burgos é um dos maiores nomes da história da música brasileira e, como Elis, continuará sendo cada vez mais ouvida. Os argentinos têm uma “brincadeira” com Carlos Gardel. Se alguém se refere à morte de Gardel, vem alguém dizendo: “calma lá, Gardel não apenas não morreu como canta cada vez melhor”. É o que poderemos dizer de Gal daqui pra frente.