"A vida é agora, aprende. O pó acumula todos os dias sobre as emoções." (Caio Fernando Abreu)
Como convém que façamos periodicamente, vamos proceder uma triagem das nossas lembranças. Tratando logo de excluir as desagradáveis, essas que envolveram sentimentos que nos envergonham ou deviam envergonhar, como inveja, ódio, indiferença e ingratidão, e, nos fixemos naquelas que nos dão prazer de relembrar.
E o que elas têm em comum? Obrigatoriamente, a emoção. A valorização da capacidade de se emocionar é uma divisória entre as pessoas que valem a pena e aquelas que não podemos perder a oportunidade de evitar, porque a vida é curta demais para ser desperdiçada em miudezas. Uma vida sábia é identificada pela capacidade instintiva de selecionar para o compartilhamento de grandes alegrias ou inesquecíveis tristezas aqueles parceiros capazes de expressar emoções com naturalidade e repartir silêncios sem desconforto.
A sensibilidade, como se sabe, está sempre de tocaia no coração dos generosos.
Em algumas profissões, como a medicina, por exemplo, a emoção é imprescindível como o primeiro degrau de acesso à empatia, esta reconhecida como exigência básica para quem se exponha ao desafio de compartilhar o sofrimento alheio. Na relação com os estudantes de Medicina e residentes, como já escrevi, tenho insistido em desmascarar o argumento fajuto de que o médico deve manter uma certa distância dos sentimentos do paciente para que isso não interfira na imparcialidade de suas decisões nas condutas mais dramáticas. Por sempre acreditar exatamente no contrário, tenho insistido que os médicos não devem se esconder para chorar quando der tudo errado, porque nada aproxima tanto o paciente do seu médico quanto a percepção de estar diante de um ser tão parecido com uma pessoa normal, que não se constrange de oferecer parceria quando nem tudo saiu como esperado.
Admitindo que é uma tolice a pretensão de mudar as pessoas pela insistência de um discurso disciplinador, proponho que evitemos os rígidos, porque eles são irrecuperáveis, e nos detenhamos nos emotivos, que têm fragilidades análogas e dividem a crença de que, sem emoção, a vida fica vazia.
Entre os meus amigos selecionados por esta virtude, está o Roberto Coral, um grande cirurgião, com a emotividade exacerbada dos italianos, e que escreveu um lindo texto sobre uma crise de choro incontrolável quando descobriu, num passeio aleatório pela cidade, a beleza da praça de São Marcos, uma referência turística da encantadora Veneza.
Muitos dirão que também sentiram um aperto no peito quando chegaram de barco pelo grande canal e depararam com aquela imensidão de arquitetura e história medievais. Tento sempre esquecer de uma socialite que não resistiu a se queixar da quantidade de pombos ("Esses ratos do asfalto que transmitem doenças!") e que certamente não perdeu seu precioso tempo para descortinar a indescritível imagem panorâmica do alto da torre da catedral.
Mas para justificar esta crônica, é preciso dizer que o Coral é muito mais do que um italiano chorão. Ele é um cara portador de uma delicadeza emocional reconhecida pelos seus amigos diretos, o que lhe assegurou o direito de repetir o choro na segunda visita à praça de São Marcos, porque a sensibilidade, como se sabe, está sempre de tocaia no coração dos generosos, esses convictos de que as grandes emoções se renovam na recidiva.
E naturalmente ele não fez nenhuma referência ao revoar dos pombos, porque já aprendeu que os ratos estão em todo lugar, e não vale a pena gastar uma palavra com eles.