Nas visitas aos leitos com estudantes, é rotina que se faça um resumo do caso, antes que entremos no quarto, para que os alunos tenham uma noção do que irão encontrar.
Era um grupo de oito jovens, quartoanistas de Medicina, e a introdução foi sucinta:
— Vamos agora conhecer o Guilherme, de 57 anos, que tem um câncer avançado de esôfago, que tratou com quimioterapia e radioterapia, com uma resposta pobre, e a doença evoluiu até o surgimento de pelo menos três metástases cerebrais. É um paciente em fase terminal da doença, com um emagrecimento impressionante.
Um dos alunos, visivelmente ansioso, perguntou:
— E o coitado ainda está consciente?
A confirmação de que sim resultou em três abandonos da visita. Uma doutora justificou:
— Eu não saberia o que dizer, muito menos o que perguntar, e eu choro com muita facilidade, o que acho que só iria deprimi-lo mais ainda.
Achei que a visita com o grupo rachado não valeria a pena, e voltamos para a sala de reuniões, para uma espécie de pausa emocional, a fim de organizarmos nossas cabeças e nossos sentimentos.
Tínhamos de redefinir como a proximidade da morte é vista pelo doente. Porque, se isso for entendido, ficará compreensível a irritação do paciente com o discurso falacioso do médico ao descrever o que será feito para que desfrute um tempo que ele reconhece como impossível: o futuro.
Era evidente, pela ansiedade coletiva, que a dificuldade aparentemente intransponível que o grupo antevia era a ausência de palavras adequadas. E a palavra, como se sabe, é o mais precioso instrumento de trabalho do médico, porque é através dela que conquistamos confiança ou plantamos incerteza, que somos acolhidos ou rejeitados, que oferecemos parceria ou nos perdemos na ilusão de que o paciente dará à tecnologia o mesmo valor com que a reverenciamos.
Quando a doutora que se confessara chorona relatou duas experiências prévias em que não conseguira sequer que os pacientes fixassem o olho nela, ficou claro que tínhamos de redefinir como a proximidade da morte é vista pelo doente. Porque, se isso for entendido, ficará compreensível a irritação do paciente com o discurso falacioso do médico ao descrever o que será feito para que desfrute um tempo que ele reconhece, pela percepção de sua fraqueza orgânica, como impossível: o futuro.
Ser médico nessa hora é entender que o fim da vida é reconhecível com a maior certeza pelo paciente, e que tudo que lhe interessa, nesse estágio, é como manejar o passado com suas sombras e dúvidas, e mentiras e traições, e culpas e remorsos. E o médico que pretenda escalar esse degrau superior da medicina é o que se oferece para ajudá-lo a apaziguar seus demônios, para que ele morra em paz.
Quando saía do hospital, dei uma última espiada. A doutora estava sentada na cama do seu Guilherme e lhe segurava uma das mãos. Quando ela comentou que "neste andar, não tem ninguém com netos tão lindos no porta-retratos!", ele sorriu, e ofereceu-lhe a segunda mão para que ela segurasse. Tomara que ela tenha chorado, porque terá descoberto, bem cedo na vida, o quanto o choro médico é bom de chorar.
P.s.: na terça (25), às 18h, estarei no elegante Centro Histórico e Cultural da Santa Casa para uma sessão de leitura de crônicas, com participação de Laura Medina, e de autógrafos de meu novo livro, Se Você Para, Você Cai. Ficarei feliz de recebê-los.