Tinha 21 anos de idade – quinze a menos do que o peso de minha mochila (cheia de livros, que precisei ir dispensando à beira do caminho) –, quando cruzei os Estados Unidos de carona. Fui de Nova York a São Francisco, refazendo a rota que o escritor Jack Kerouac havia percorrido em 1947, e iria resultar na obra-prima On the road/Pé na estrada, que eu estava destinado a traduzir. Cheguei em San Francisco dois meses depois de apontar meu polegar naquela direção: não tinha pressa, então fui pingando ao longo da odisseia. Instalei-me num albergue mantido pelo Exército da Salvação. Uma campainha estridente soava às 7 da matina: você tinha que saltar da cama, arrumá-la e se mandar dali; só podia voltar às 19 horas e se até as 22 não estivesse dentro, ficava fora.
Já no primeiro dia, decidi ir a pé das alturas de Haigh-Ashbury aos baixios de North Beach. Era uma peregrinação, não só para visitar a lendária livraria City Lights mas tentar contato com seu fundador, o poeta beat Lawrence Ferlinghetti. Para meu espanto e êxtase, ele me recebeu. Conduzido ao sótão, conversei por uma hora com um dos mais sutis e inovadores poetas do século 20. Era janeiro de 1980, e Ferlinghetti já estava preocupado com o avanço de Ronald Reagan nas pesquisas. Confirmando seus piores temores, o ex-ator canastrão e dedo-duro seria eleito presidente em novembro.
Nascido em 1919, Ferlinghetti tinha 60 anos quando o encontrei. Ninguém tinha 60 anos no meu mundo – nem meu pai, que estava com 52. Fiquei espantado com a leveza, o estilo, a jovialidade daquele sujeito. Ainda mais sabendo dos percalços de sua vida: seu pai morreu antes de ele nascer, sua mãe foi trancada num hospício antes de ele fazer dois anos; uma tia levou-o para a França mas, ao voltar para os EUA, colocou-o num orfanato. Lawrence acabou se vinculando à uma família rica e, aos 12 anos, ganhou um futuro.
Ferlinghetti apareceu para o mundo em 1951, ao fundar a City Lights, onde os beats se reuniam para recitar, fumar e beber até cair, ao som de jazz. Em 1953, ele publicou Uivo, de Allen Ginsberg, e o livro foi proibido por “obscenidade”. Ferlinghetti levou a questão à Suprema Corte e lá demonstrou o que significa liberdade de expressão – sem defender o AI-5. Em 1958, lançou Um parque de diversões da cabeça (que traduzi, em 1984) e se alçou ao posto de um dos mais requintados e populares poetas dos EUA. Seu esporte favorito virou desafiar gente baixa de alto calibre: Nixon, Edgar Hoover, Reagan, Bush pai e filho. E ele não só viveu para afrontar o desprezível Trump como para vê-lo ser enxotado do poder em 6 de janeiro.
Lawrence Ferlinghetti morreu na terça-feira, 23, um mês antes de completar 102 anos. Mas viverá enquanto a poesia – a “arte insurgente”, como ele a chamava – desafiar o poder.