Faz uns anos, estive na China – por intermináveis 38 dias. Gostei de Xangai, mas não se pode dizer que essa afobada megalópole seja a China-raiz, pois não? Tanto é que ficamos no Bund, o antigo distrito internacional de Xangai, e nos instalamos num hotel que mais parecia saído de Gotham City. Tipo o edifício Sulacap, ali na Borges com a Rua da Praia. E foi justo quando estávamos chegando lá, após longo dia de trabalho, que vimos uma placa. Nela estava escrito em chinês e em inglês: “Essa calçada ficará interditada das 18 horas de hoje às 6 horas de amanhã”. Olhamos no relógio: faltavam dois minutos para às 18. Então, um caminhão dobrou a esquina. Um exército de operários saltou dele, programáticos feito robôs, e começou a retirar o piso da calçada como se estivessem todos famintos por concreto.
Subimos para os quartos. Tiramos a poluição do rosto e das mãos, trocamos de roupa e saímos para jantar. Cruzamos pelas abelhas operárias zumbindo suas brocas e esburacando o cimento das lajes. Pulamos os escombros e fomos até o restaurante. Enchemos o bucho e, ao voltarmos para a fortaleza art-déco, a gangue seguia arrancando o piso do chão. Subimos para desfrutar o sono dos justos. Quando o sol e as obrigações vieram nos despertar, saímos e.... a calçada estava pronta! Não só na frente do hotel, mas ao redor do quarteirão inteiro. E não só refeita: toda ajardinada – havia canteiros de um por um metro, com cerquinhas de madeira ao redor e arvorezinhas de um metro e 60 cm dentro, a cada cinco metros. E era uma calçada inclusiva: para cegos, surdos, mudos, daltônicos, o que fosse.
Relembro isso pois dia sim dia também tenho trotado pela rua Dr. Vale, no Moinhos de Vento. Faz mais de mês que a calçada do histórico hospital que está ali há quase cem anos vem sendo reformada. Ao ritmo alucinante de meio metro por dia... Às vezes os operários-fantasma lembram-se de demarcar o espaço com fitas para os pedestres passarem – pelo meio da rua, claro. Noutras, não há sinal nem das fitas nem dos fantasmas. Mas acredito que tão logo Porto Alegre inteira esteja vacinada, a nova calçada estará prontinha.
Não creio que seja o caso da calçada do outro lado da rua. Essa ladeia a Hidráulica do Moinhos, também quase centenária. Feita de pedras portuguesas, deveria formar um mosaico de blocos azuis e rosados. Só que todas as vezes em que foi feito um reparo ali, aqueles que fecharam o buraco que abriram não tiveram saco, tino, discernimento ou interesse em refazer o desenho original. Isso quando não deixam os pedregulhos soltos, like a rolling stone. Tipo os paralelepípedos da Rua Praia, que jazem sem nexo, sem lógica – feito certos governos.
Calçadas são um símbolo de civilidade. Um povo que não sabe o que fazer com as suas não pode saber onde está pondo os pés.