Fui gerado em Canela. Foi meu pai, uma figura que cintilava entre o fascinante e o assombroso, quem me contou. Em detalhes, aliás. Que eu nem sei se queria saber. Mas, vá lá: agora eu sei. Tudo se deu numa casa com a dignidade imponente que só a madeira – de araucária – é capaz de conceder às casas. Ela ainda está lá, amarela, entre hortênsias e pinheiros, perto das ruínas espectrais do Cassino de Canela, e meu irmão vive nela. Passei ali quase todas as férias escolares de inverno e de verão. E foi assim que Canela virou o melhor lugar do planeta para mim: meu Parque Triássico particular.
Sim, Hollywood, Spielberg & Michael Crichton, tadinhos, criaram o Parque Jurássico deles. Ocorre que o Triássico – período durante o qual boa parte da ossatura geológica de Canela se constituiu – veio antes e foi mais duradouro, mais turbulento e mais explosivo em vida primitiva. Aos sete anos de idade, entre xaxins descomunais, riachos que murmuravam, nós de pinho simulando meteoritos e penas de gralha-azul mescladas a pedregulhos pontiagudos (que, para mim, só podiam ser flechas de homens de Neanderthal), fui um guri feliz.
Mais tarde, aos 17, descobri Rambo. Não o deles, o nosso: Balduíno Rambo, jesuíta gênio das ciências naturais, autor do clássico A Fisionomia do Rio Grande do Sul. E então, o que fora apenas devaneio infantil revestiu-se do peso e da leveza do saber – sem deixar de ser lisérgico. Fiquei sabendo que o Campestre Canella surgiu na exata porção de terra onde a floresta subtropical pluvial começa a ceder lugar aos soberbos Campos de Cima da Serra, com a mata cerrada abrindo espaço às clareiras recobertas por gramíneas, capões, pinheirais e lajeados por sobre os quais deslizam os córregos que cantam.
Pois o primeiro local onde se dá essa transição, tão sublime e típica, é o campo no qual se ergue o Palácio das Hortênsias, inaugurado em 1954 para ser a casa de veraneio dos governadores gaúchos, quase ao lado do campestre onde o pioneiro João Corrêa fez o agora centenário Grande Hotel Canela. No ano 2000, os nove hectares do parque foram cedidos pelo Estado à prefeitura de Canela. Agora, como ZH já noticiou, a prefeitura pensa em repassar a área à iniciativa privada, e uma empresa de Balneário Camboriú – a mais medonha das praias catarinenses – pretende erguer ali um centro de eventos, um hotel com 200 apartamentos (de fato, há poucos na região) e estacionamento para mais de mil carros.
A questão se definirá numa votação na Câmara de Vereadores, no dia 13 de agosto.
Não sei o que vai rolar. Mas sei que, quando tivermos voltado todos ao pó de onde viemos, o campestre estará lá onde sempre esteve – pelo menos desde o Triássico. De todo modo, se o projeto chamado Canela do Futuro for adiante, tenho uma modesta proposta: mudar o nome para Futuro do Pretérito. Mas daí pelo menos Canela vai parar de querer imitar Gramado: vai imitar Balneário Camboriú.