Sob a penumbra umbrosa e o ar mortiço, o templo que deveria ser sagrado na verdade exala um clima profano. Foi erguido para celebrar a vida, mas mais parece uma exaltação à morte insepulta, dia após dia, há quase um século. Um facho de luz baça se projeta do teto, transpassa o sarcófago de vidro e então alumbra a face severa e pétrea do falecido. É um rosto macilento de cera – ou uma máscara mortuária de carne –, mais inquisidor do que tenebroso. Quase esfinge em vez de múmia, a propor, em silêncio mortal, o enigma às avessas: “Devora-me ou te decifro”.
Ninguém jamais ousou devorar Vladimir Ilitch Lênin, embora seja lícito dizer que ele também não foi capaz de decifrar as charadas da História que um dia quis jogar na lata de lixo. O líder da maior revolução social de todos os tempos morreu em janeiro de 1924. Mas jaz até hoje em praça pública, mumificado feito um faraó de araque. Não foi ele, no entanto, quem traçou seu destino pós-vida: Lênin só queria ser enterrado junto à mãe.
Ocorre que na velha Rússia era costume embalsamar os czares, mesmo os mais terríveis. Além disso, a tumba de Tutancâmon tinha sido descoberta apenas dois anos antes no Egito e Stálin era um gênio na fabricação de mitos: foi ele quem decidiu tornar seu velho mestre um morto-vivo. É possível que a intenção dos embalsamadores fosse fazer de Lênin um ícone, como as obras-primas medievais de Andrei Rublev. Mas 94 anos depois, ele lembra um Darth Vader num mausoléu interestelar.
Qual pirâmide em degraus, com prumo e sem ponta, feito de mármore, labradorite, pórfiro e granito, o mausoléu está bem ali, na necrópole aos pés das muralhas do Kremlin, rubras como sangue. A tumba de Stálin, que também foi embalsamado (mas depois deixaram que retornasse ao pó), fica logo atrás, como se em sonâmbula e insone vigilância. Já o cosmonauta Yuri Gagarin e o jornalista norte-americano John Reed, que foram às alturas, esses parecem descansar em paz, apesar dos ruídos dos passos – dos vivos e dos mortos.
Sim, a tumba de Lênin ainda atrai milhares de visitantes todos os dias. Eles entram na fila, sem seus telefones ou máquinas fotográficas (é proibido fazer fotos na tumba) e penetram, silentes, solenes, com juras de amor ou juras de maldição, reverentes ou incrédulos, gratos ou irados, num túnel do tempo. Para ver um passado sem futuro.
Jazendo desmorto em sua pirâmide, ao custo de quase mil dólares diários, metido num terno funéreo e sem o cérebro (extraído em 1924 para estudos – que revelaram um caso grave de arteriosclerose), Lênin lembra um Drácula de filme B. Sem que ninguém tenha lhe cravado no coração a estaca que enfim o deixaria sob sete palmos de terra e 70 anos de histórias mal contadas. Pela eternidade e mais um dia.
Até os humanos estarem prontos para construírem uma sociedade mais decente. A sociedade com a qual ele sonhou e que, junto com seus amigos e seus inimigos, ajudou a transformar em pesadelo.