Foi Liev Tolstói quem disse: "Canta tua aldeia e cantarás o mundo". Assim sendo, creio que se pode dizer que se a Rússia fosse o Rio Grande do Sul, Moscou seria, é claro, Porto Alegre. E para verificar o peso histórico de tal assertiva, basta um passeio pela Praça Vermelha. Pois é ali que as semelhanças entre as duas capitais abundam, embora seja preciso admitir que Moscou, fundada por volta de 1156, é um tantinho mais antiga (a jovem e jovial Porto Alegre veio ao mundo apenas em 1772) e, com 13 milhões de habitantes, também é mais populosa.
Tirando essas diferenças, o fato é que, no coração cívico de ambas as metrópoles as similitudes são muitas, pois é inegável que a Praça Vermelha guarda estreitos paralelos com a nossa Praça da Matriz.
Se não, vejamos:
O Kremlin é o Palácio Piratini dos russos: o centro do poder, o lugar das decisões de impacto. No caso do Kremlin, de impacto global; no caso do Piratini, impacto aldeão. Mas você não vai querer que eu repita a frase de Tolstói, vai? E Kremlin, todos sabem, quer dizer "fortaleza" – até porque essa vasta cidadela murada já resistiu ao ataque dos mongóis, dos tártaros, do exército napoleônico e da máquina de guerra nazista. Mas nunca foi atacada pelos farroupilhas, nem sediou o movimento da Legalidade!
A bem da verdade, o Piratini não chegou a ser alvo dos farrapos pelo simples fato de que o prédio ainda não existia naquela aurora precursora do 20 de setembro de 1835, quando os bravos de Bento Gonçalves cruzaram a ponte da Azenha (que saudades da Azenha!) para atacar a muy leal e valorosa cidade de Porto Alegre. Mas se o Piratini ainda não havia sido construído no aurorescer da Guerra dos Farrapos, o fato é que já existia ali, no mesmo lugar, o chamado Palácio de Barro, erguido em 1773 e que desde 1789 sediava o governo do Rio Grande.
E aqui reside mais uma semelhança entre o Kremlin, originalmente conhecido como "fortaleza de madeira", e o Piratini, cujo antecessor, agora você sabe, atendia pelo apelido de "Palácio de Barro".
Além disso, o Kremlin ocupa a fachada sul da Praça Vermelha – exatamente como faz o Palácio Piratini na Praça da Matriz. E o que se fica justo ao lado, bem dizer colado, ao Piratini? A Igreja da Matriz, é claro. Pois o que se ergue quase grudado ao Kremlin? Exatamente a mesma coisa: uma igreja. Mais do que uma igreja, uma catedral (como é a nossa, aliás): a Catedral de São Basílio.
Por ser Moscou mais idosa que Porto Alegre, a catedral de São Basílio também acumula alguns aninhos a mais do que a Igreja da Matriz: ela foi construída entre 1552 e 1561, ao passo que a nossa veio à luz em 1794 (e ainda não estava pronta em 1821). Mas o fato que se impõe é que as duas praças têm catedrais bem do lado do palácio do governo.
Já na fachada norte da Praça da Matriz está o admirável Theatro São Pedro, ao passo em que na fachada norte da Praça Vermelha ergue-se a Gum, ou Loja Principal Universal. São dois prédios lindos, mas o nosso é mais velho. Certo, a Gum é maior: tem quase 500 metros de fachada e se divide em três grandes edifícios unidos por galerias internas. Mas não passa de um shopping – e isso desde sempre, desde sua inauguração em 1890, enquanto o nosso São Pedro é, e desde 1858, um permanente reduto de diversão e arte.
Na fachada oeste da Red Square, está o Museu Histórico Russo, também chamado de Museu do Estado, ou Museu Militar, tantas são as guerras pelas quais passou essa nação. Certo, não temos museu na Praça da Matriz, embora o Museu Júlio de Castilhos fique bem ali pertinho (e lembre-se que lá estão expostas até mesmo as botas de um gigante, que vi quando era criança, e jamais esqueci).
De todo modo, é só descer para a Praça da Alfândega e lá se encontra o Memorial do Rio Grande do Sul. E veja quantas semelhanças entre os dois museus: ambos tratam, basicamente, de guerra e paz. Está certo que foram Tolstói e Tchaikovsky que escreveram e musicaram as guerras russas. Mas Erico Verissimo e o maestro Mendanha não fizeram o mesmo pelas nossas?
Bem, mas se você ainda não está convencido das similaridades entre a Praça Vermelha e a nossa Praça da Matriz, prepare-se para o touché final: em frente ao Kremlin fica o quê? Ora, o mausoléu do camarada Lenin, é claro. E no coração da Praça da Matriz ergue-se qual monumento? A homenagem ao pai-fundador de nossa politica tão peculiar e tão gaúcha: o monumento a Júlio de Castilhos, muito mais bonito e requintado do que a vetusta, retangular e sem-graça tumba de Lenin.
E se o monumento inaugurado em 1913 não é exatamente o túmulo de Júlio, qual a frase que aparece ali, eternizada em bronze? O lema cunhado pelo filósofo francês Augusto Comte, um dos mentores intelectuais de Castilhos: "Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos". Pois não é exatamente com isso que Lenin, embalsamado ao custo de R$ 2 mil diários e repousando para a eternidade em seu feioso mausoléu, sempre sonhou?