Foi quando o cristianismo era pouco mais do que uma miragem tremeluzindo desde as areias inférteis do Oriente Médio – de onde, claro, era originário – e o paganismo seguia sendo a floresta luxuriante de liames e líquens, de musgos e murmúrios, porém entulhada de madeira velha, pronta para arder sob o fogo do proselitismo, soprado por uma fé intolerante, voraz e monolítica. Foi o tempo descrito por Gore Vidal em Juliano, quando a nova religião brotava feito dardos atravessando as folhas quebradiças do outono; a época recriada também por Marguerite Yourcenar nas páginas que parecem gravadas em mármore de Adriano. Mil anos antes dos esconjuros balbuciados pelas bruxas de Macbeth num pântano de infortúnios.
Era o século 6º, e Edwin, o rei de Northumberland (na atual fronteira entre Inglaterra e Escócia), foi procurado em seu velho e assombroso castelo por um missionário cristão, vindo do continente. Com toda a humildade e prudência, o monge pediu-lhe permissão para evangelizar seu insubmisso e aguerrido povo. Com igual tino e o mesmo sizo do missionário, o rei não quis arcar sozinho com o peso de tal decisão – como se antevisse que ela mudaria a história do mundo, em especial a do seu mundo. Edwin convocou, então, um conselho de sábios e líderes tribais. E é Marguerite Yourcenar quem transcreve (mas não em Adriano, e sim no livrinho de ensaios O Tempo, esse grande escultor) o que disse um daqueles chefes, cujo discurso foi preservado por um escriba chamado Beda, o Venerável:
"A vida do homem sobre a terra, ó rei, comparada com os vastos espaços de tempo dos quais nada sabemos, parece-me semelhar o voo do pássaro que entrasse por um vão do telhado numa grande sala do castelo ao centro da qual há uma lareira acesa, e onde tu te banqueteias em meio aos teus conselheiros e vassalos, enquanto lá fora as chuvas e as neves do inverno a tudo castigam. O pássaro atravessa rapidamente o salão para sair do lado oposto e, após esse breve átimo, vindo do inverno, a ele retorna, perdendo-se de vista. Assim é a efêmera vida humana, da qual nada sabemos do que a precede nem do que se lhe seguirá...".
Baseado na poética inquietude contida naquela parábola, Edwin tomou sua decisão: já que nada sabemos – quem somos, de onde viemos, para onde vamos? –, por que não apelar para aqueles que talvez saibam de algo? E foi assim que os velhos deuses foram varridos da face da Inglaterra – sobrevivendo apenas no sortilégio das bruxas, nas de então e nas de hoje.
Embora a imagem do pássaro vindo não se sabe de onde e voltando para onde não se sabe seja poderosa e fecunda, é a lareira que crepita no centro da sala iluminada entre uma tormenta e outra que parece se impor como a chama central dessa trama. Não arderá ali o fogo do conhecimento, que faz não só com que pássaro e tempestade possam ser percebidos, mas também com que o homem tenha ousado criar um deus à sua imagem e semelhança?