Assim que o rei D Manuel e, a seguir, seu filho e sucessor D. João III deflagraram, por volta de 1499, o processo que iria impor de vez o poder do Estado e estabelecer a monarquia centralizada em Portugal, ficou evidente que o sistema judiciário seria um aliado natural na obtenção daqueles propósitos. "Racional" e sistemática, a instituição oferecia à Coroa os mais amplos e eficientes mecanismos de controle sobre a população – o que incluía não só o próprio código penal, mas também o arquivamento de dados sobre os súditos, uma novidade na época.
A interpretação e aplicação da justiça ajudava a manter intacto um dos preceitos fundamentais do mundo ibérico: o de que se tratava de uma sociedade na qual havia homens de "maior condição" e de "baixa condição". Tal desigualdade fazia parte da representação mental coletiva, era algo "natural", sendo, por isso mesmo, sancionada pela lei do reino. Os crimes eram punidos de acordo com "a qualidade" do infrator, fosse ele "peão" ou "fidalgo".
Peões (ou "homens a pé", que não podiam servir ao rei com cavalo, como "cavaleiros") eram pessoas de "baixa condição". A "pena vil" (pena de morte) e os açoites eram reservados exclusivamente a eles. Acima dos peões, escalonavam-se as pessoas de "maior condição": escudeiros, cavaleiros, vereadores, escrivães e magistrados – muitos deles fidalgos (ou seja, "filhos de algo"), tidos como gente "limpa e honrada" e, portanto, livres de açoites e da condenação à morte (a não ser em casos excepcionais).
No topo do sistema judiciário, se achava o Desembargo do Paço. Lá, despachavam os desembargadores, cujos decretos podiam ser equiparados aos do próprio rei, pois eles estavam autorizados a "dispensar a lei ou reformulá-la". Os desembargadores usufruíam de uma série de privilégios: isenções de impostos, pensões, comendas, imunidades e os mais altos salários da burocracia estatal. Natural, portanto, que muitos almejassem se tornar desembargadores. Infelizmente, para a maioria dos pretendentes, as promoções não dependiam de competência, idade, graus universitários ou desempenho na carreira, estando mais ligadas ao fato de "ter ou não o progenitor do pretendente servido à Coroa".
Conforme o brasilianista Stuart Schwartz, especialista no tema, "as relações de parentesco, interesses e amizades criaram uma teia, tornando os desembargadores um grupo autoperpetuador, com características de casta". Esse jogo de interesses, troca de privilégios e tráfego de influência cedo minou os alicerces do Desembargo do Paço – e logo manchou sua reputação.
Ainda assim, quem estuda o assunto sabe que muitas foram as vezes em que os desembargadores se mostraram capazes de julgar peões com toda isenção. E não foram poucas as ocasiões em que condenaram aqueles cuja culpa restou provada – algo justo e elogiável. Pena é que, se o réu fosse fidalgo, o rigor não seria o mesmo.
E a pena não seria vil.