Assistiu Deserto? Passou numa semana passada, e passou quase em branco. Se não viu, não perdeu grande coisa. Após deixar a plateia sem fôlego e de ponta-cabeça em Gravidade – e assim levar um Oscar –, o mexicano Alfonso Cuarón caiu na terra. Mas quem come poeira somos nós. Cuarón produziu para seu filho Jonás dirigir um filme cheio de boas intenções, embora esvaziado por um roteiro desidratado. O tema que aborda, porém, é tórrido: imigrantes ilegais dando de cara no muro da intolerância, ali na desértica fronteira do México, tão longe de Deus, tão perto de Trump. Acontece que ninguém veio aqui para falar no cinema, não é? O que se impõe é o pretexto da trama: caçada humana.
Os americanos filmam seus próprios horrores melhor do que qualquer outro povo e, portanto, já fizeram filmes bem superiores sobre isso – e sobre todo o resto também. Sem pensar muito, lá estão Mississippi em Chamas, Na Mira da Morte e... Caçada Humana. Também escreveram melhor sobre a questão. Hemingway, no ensaio On the Blue Water: "Certamente, não há caça como a caça ao homem, e aqueles que os caçaram e gostaram nunca mais se interessaram por qualquer outra coisa, pois, após vivenciar tal experiência, a vida normal se torna tão insípida quanto vinho degustado por papilas cauterizadas".
Aqueles que seguem brincando de polícia e ladrão nas grandes cidades brasileiras são péssimos de mira.
Caçar humanos por esporte é prática antiga e bem real. Inclusive no Brasil. Foi assim: em 1812, o príncipe regente Dom João decidiu introduzir o cultivo do chá no Jardim Botânico que ele próprio fundara, no Rio. Para isso, trouxe de Macau, então colônia lusa na China, quatro mestres, 140 agricultores e 6 mil mudas do arbusto. O plantio deu em nada e os chineses, que ganhavam seis patacas por mês, ficaram ao deus-dará. Quem deu as caras foi o diabo.
Dom Miguel, filho de Carlota Joaquina e de Dom João (embora seu pai biológico fosse o marquês de Marialva), era um guri mau. Bem mau. Nascido em Lisboa, em outubro de 1802, passou a infância para os lados da Barra da Tijuca, junto com o irmão mais velho, Dom Pedro, que ele odiava e de quem usurparia o trono, anos mais tarde. Às vezes, Dom Miguel sumia. Reaparecia na Lagoa Rodrigo de Freitas, onde podia ser visto embrenhando-se na luxuriante floresta da Tijuca. Ia caçar.
Com cavalos, cães e escopetas, o príncipe e uma turma de amigos mais velhos e de sangue menos real – mas, ainda assim, nobres, como ele – divertiam-se vendo quem abatia mais chins.
O escândalo foi denunciado pelo diplomata britânico J. Prattle e comentado, na surdina, por John Luccock, autor de um livro clássico sobre o Brasil. Só assim acabou vazando.
Caçar humanos não emplacou como esporte da nobreza no Brasil – até porque nobreza anda em falta no mercado. A questão é que aqueles que seguem brincando de polícia e ladrão nas grandes cidades brasileiras são péssimos de mira: erram o alvo quase tanto quanto acertam. O problema é que a gente nunca sabe o que suas balas perdidas acharão.