Não parece que foi ontem. Nem anteontem, para dizer a verdade. Trás-anteontem ainda vá, não tivesse a palavra tanta facilidade em se transmutar na aberração "tresontônti". O certo é que faz tempo, um bom tempo. Era 9 de agosto de 1976 – caiu numa segunda-feira, eu garanto; mas você pode conferir (com a internet ficou muito mais fácil mentir, mas mais difícil também...). Resolvi ir a pé. Foi uma decisão consciente. Não que eu tivesse carro, mas também não tinha paciência para o T3, a nova linha transversal da Carris, cujos ônibus pareciam passar só de hora em hora. Além do mais, já conhecia bem o caminho de inúmeras marchas épicas: do Moinhos à Azenha, de uma moenda a outra, pelas margens do riacho, era uma peregrinação. Pelo menos para mim. Até a pé... etc.
Sim, faz tempo, mas o Dilúvio já não se chamava Jacareí ("rio dos jacarés") nem separava a sesmaria de Jerônimo de Ornelas da de Francisco Chaves. Mas já estava podre. Os jornais diziam que "em breve" ele estaria limpo. Eu não estava certo de que os jornais dissessem a verdade – não só no caso da despoluição do Dilúvio. Mas achava que os jornais podiam mudar o mundo. Não que o mundo não estivesse mudando – estava, e rápido; só que ninguém sabia bem para onde. Porto Alegre tinha seis jornais. Um deles, a Folha da Manhã, sonhava em mudar o mundo. A Folha da Tarde também, só que para trás... O Correio do Povo tinha certeza (e não havia por que duvidar) que o mundo era seu e que, portanto, não havia por que mudá-lo.
Quando os jornais não tiverem mais papel, o mundo não vai melhorar nem um pouquinho.
O Jornal do Comércio era do mundo dos negócios, que está sempre mudando para ficar igual. O mundo do Diário de Notícias estava ruindo. Zero Hora era o novo mundo. Pelo menos para mim.
Entrei. Minha primeira visão foi turva. Não era proibido fumar: era proibido não fumar. Em meio à nevoa densa e sob o matracar retumbante das máquinas de escrever, achei que só havia velhos no recinto. Eu estava certo: a idade média devia beirar impensáveis 30 anos. Eu tinha 18. Achei que eles teriam muito a aprender comigo. Mulheres constituíam cerca de 10% da população local: uma dúzia, se tanto. Felizmente uma delas – e logo a mais bonita – seria minha chefe. Pena que ela estava de férias. E o preposto tinha recebido ordens para me tratar mal. Minha fama me precedera: eu era coxinha do Moinhos de Vento e não deveria durar muito ali. Não que o substituto fosse ferrenho cumpridor de ordens – mas essa ele cumpriu. E me tratou bem mal. Acabou sendo bom. Pelo menos para mim. Aprendi com eles, embora ache que ninguém aprendeu nada comigo (deve ser por isso que estou de volta).
Os jornais não mudaram o mundo ao longo dos 41 anos, três meses e duas semanas que se passaram desde aquele primeiro dia para este.
Mas acompanharam e registraram suas mudanças. Quando os jornais não tiverem mais papel, o mundo não vai melhorar nem um pouquinho. Haveremos de suspirar com a expiração dos jornais. E não vai ser de nostalgia.