Já fui preso 11 vezes, em seis línguas diferentes. Fui preso em norueguês, em italiano, em chinês, em espanhol (duas vezes), em inglês (três) e em português. As menos interessantes foram as três no meu idioma nativo – essas, não conto nem sob tortura.
Em norueguês, fui preso em Flan, uma aldeia minúscula. Era novembro de 1978. Eu estava num albergue. Tinha um africâner lá. Em pleno café da manhã, ele zuniu que todos os negros deveriam ser varridos do mundo. Meu sangue enregelou-se como a neve, essa supremacista branca que recobria as montanhas. Urrei impropérios. Ele cuspiu na minha cara. Esmaguei-lhe a barriga com a mesa entre nós e a parede às costas dele: as tripas do miserável quase lhe saíram pela boca suja. Fomos conduzidos coercitivamente à delegacia, onde o escrivão ouviu o depoimento das testemunhas oculares da história. Saí aclamado da cadeia. O sujeito ficou lá. Tomara que ainda esteja.
Em italiano, fui preso em Veneza. Perdi o horário do albergue. Bati na campainha mil vezes, arranhei a madeira com as unhas, verti lágrimas de sangue (ou seriam de tinto?). Após meia hora de silêncio, entendi que teria de dormir na rua. Era dezembro de 1978 (eu recém deixara a cadeia em Flan). Encostei-me num muro roído pelo tempo, tiritando. Então, um camburão aquático com um farol do tamanho do bumbo da Geral do Grêmio iluminou minha cara. E a dos dois punguistas argelinos a uns três metros de mim. Deslizamos pelos canais da Recife italiana a bordo da bat-lancha, algemados. Os jihadistas amadores tentaram puxar conversa. Ignorei-os. Eu havia feito a cobertura da Copa de 1978 por Zero Hora. Tinha visto a Azurra jogar e ser garfada pela Argentina. Escalei o time todo e critiquei o juiz safado! Deixei a cadeia como qualificado cronista esportivo. Mas só ao raiar do dia seguinte, porque os gentis carabinieri não me deixaram dormir ao relento, nem partir sem um bom desjejum...
Em chinês, fui preso em Wenzhou. Foi em 2010. Eu pesquisava para a biografia de um admirável empresário sino-brasileiro. Meu irmão fez fotos do rio onde a família que eu biografava florescia desde o ano 1610. Mas era "zona de segurança". Um recruta quis tomar a máquina dele. Depois um cabo, um sargento, um pelotão; aí veio a polícia civil, depois os "membros do partido". Até que um carro rangiu as rodas e dele saltaram três homens de preto. The men in black, com reforço. Eles nos levaram. Chegamos ao Dops de lá e já sabiam tuuuuudo sobre nós, talvez até que eu era o Peninha, do Pra Começo de Conversa. Da TVE. Os agentes secretos tiraram fotos comigo. Não me pareceram muito secretos para agentes, mas você sabe, chineses são todos iguais mesmo. Saí como um escritor consagrado da cadeia.
A banda Titãs já cantou com a sabedoria dos doidões: "Polícia para quem precisa de polícia". Os Titãs e eu não precisamos de polícia. O Brasil precisa. As outras prisões, conto outra hora.