Havia três hollywoods no quintal. Eram frondosas, de casca enrugada e galhos retorcidos feito braços de uma deidade hindu projetando uma veneranda sombra. Sim, hollywood, como seria óbvio intuir, é uma árvore. Adoro árvores, estudo as árvores, até já fui uma árvore – ainda assim, ignorava a existência dessa espécie sagrada, tão similar às corticeiras da serra gaúcha. A casa, de madeira e vidro, lembrava a mítica cabana de Thoreau no lago de Walden, só que maior, aninhada na mata numa travessa umbrosa de Sunset Boulevard, em Los Angeles, pertinho de... Hollywood. O chalé tinha um quarto de hóspedes com uma cama dura como a de um iogue. "Anatoli Boukreev dormia aí", disse o anfitrião em tom solene. Quem leu o best-seller No Ar Rarefeito, de Jon Krakauer, sabe de quem se trata, embora ali Krakauer pinte esse heroico alpinista russo como um vilão. Ainda bem que tomou um soco por conta disso, mas esse é outro assunto. (Se você me pagar por fora, talvez um dia eu conte.)
Por ora, basta dizer que eu estava no quintal da casa, um tanto absorto em elucubrações botânicas. Então, Victor Maymudes, o dono da casa, que descia a trilha rumo à cachoeira nos fundos do terreno, gritou: "Hey, Little Feather, answer the fucking door". (Em versos, algo como: "Pô, Peninha, atende a porra da campainha".)
Abri a porta de madeira seivosa. Dei de cara com olhos espantosamente luminosos, de uma melancolia devastadora, realçada pelos cabelos de palha de milho. As maçãs da face, bem, eram a própria materialização da figura de imagem: ossudas maçãs numa face angulosa. Os lábios finos feito navalha, de um vermelho róseo, pareciam mortiços: era como se os olhos tivessem drenado para si todo o fulgor dos beiços. A pele era translúcida de tão alva, e os dentes, de coelho. E a voz – deuses do céu –, a voz era ao mesmo tempo cavernosa e suave, melódica e retumbante. Mesmo que você não o conhecesse, iria pensar: "Cara, quem é esse sujeito? Não pode ser deste mundo: ele está além do tempo e fora do espaço".
Mas acontece que eu o conhecia. Não ao vivo. Mas dos discos. Naquele dia, ele me deu uma camiseta. Ela estampava sua própria face numa montagem fotográfica cubista: um olho, um pedaço do maxilar, a franja recobrindo um naco estreito da testa. As maçãs da face. Estilhaços dele mesmo, como num espelho partido. É isso que a fama, a estrada, a "indústria" (fonográfica, no caso) e a heroína fazem com os que ousam roubar o fogo dos céus e trazê-lo aqui, para esta terra escura, onde levamos nossa existência pedestre. Foi o que pensei olhando hoje a camiseta que o roqueiro Tom Petty me deu há quase 20 anos.
Faz dois meses que ele morreu.
Morreu coisa nenhuma. Basta você colocar Tom Petty no prato, na tela, no fone, no monitor para comprovar. Ele vai te dizer:
"Estou aprendendo a voar/ Mas não tenho asas/ Aterrissar é a parte mais dura...". Um monolito – e seu vívido epitáfio.